Tio Manuel da Vaca Gorda
Andarilho, Caminhante, Viajante, Andante, Calcorreador, tudo isto Ti’Manel-da-Vaca-Gorda foi. Desde as aldeias piscatórias Algarvias às margens do Tejo no Pinhal-Novo e Barreiro, desde as verdes Serras do Sul às douradas planícies do interior alentejano, fazia do caminho-de-ferro a sua estrada, calcorreando sobre travessas e carris, palmilhando milhares de quilómetros sobre a via-férrea do Sul e Sueste, parando nas estações que no caminho encontrava.
Conhecido por Ti’Manel-da-Vaca-Gorda, não por ter vaca ou qualquer outro animal, nem jumento para as suas caminhadas, personagem popular, lembrada ainda hoje pelos mais velhos, de certo o último viandante do Sul Algarvio e Alentejano, chapéu de aba larga, enfiado dentro do sempre posto casacão, de bordão numa mão e o violão na outra, a tiracolo pendia um pequeno talego, onde, como homem antigo, tinha sempre o seu bocado de pão, e um pedaço de toucinho quando não era banha, linguiça ou, quem sabe, um bom naco de presunto. Na pequena sacola escondia a bolsa das moedinhas de réis.
Nascido entre a monarquia e a republica, sem local certo do seu nascimento, mas Algarvio com certeza. Não bebia por qualquer copo, já habituado às partidas dos outros, tinha de ser bom um bem translúcido não fossem “os danados”, como pronunciava, pregarem-lhe alguma marosca.
Se fez da “linha” o seu caminho, cujo pavor aos carros as travessas palmilhava, quis o destino que viesse a morrer atropelado por um automóvel numa estrada que durante tantos anos evitara.
Se um copo de vinho lhe fazia puxar pelo violão, já as conversas sobre mulheres o agastavam, só gostava daquelas que lhe davam de comer e mesmo dessas passou a fugir depois dumas sopas estragadas ou que o deixaram mesmo mal, se alguém lhe dizia, “esta noite vais dormir com a fulana tal”, respondia “Ê cagu… para put… c’á amanhã chove mer…”, e “viva Salazar”, assim bradava em altos berros para quem o queria ouvir e vá lá uma pessoa agora saber porquê? O certo é que se nas estações da linha onde parava provocava espanto nos trabalhadores ferroviários, uma boa parte deles senão sindicalistas pelo menos politicamente conscientes, também nas tabernas os “vivas a Salazar” não passavam despercebidos aos trabalhadores agrícolas em luta pelas quarenta horas de trabalho. Valia-lhe o espanto e a admiração destas gentes e se franziam o sobrolho depressa o desfrensiam quando agarrado ao violão dedilhava mais umas desgarradas ou uma das suas modas.
Não deixava, também, por mãos alheias a defesa da sua pessoa, quando provocado por alguns jovens mais atrevidos, ou por outros menos jovens, que gostavam de lhe fazer tilintar a bolsa cheia de “réis”, só para o fazerem barafustar e ouvir no seu falar algarvio, o Ti’Manel para lá levantava o seu bordão em jeito de ameaça e fazendo entoar bem alto o seu sotaque algarvio da serra em meros desabafos “filhos do débo”, ou “débo que vos pariu”.
Pertences eram poucos, muda de roupa lavada, por ele, nalgum barranco ou ribeira, quando não era nalgum poço e secada ao sol, conforme pernoitava nessas serranias ou charnecas, talego aviado de algumas comedias e o sempre companheiro careto, talhado pelas suas próprias mãos, peça única de engenharia artesanal, cujo tampo cónico lhe conferia uma singular feição.
Tunes, Messines, Amoreiras, Garvão, Ermidas até ao Barreiro ou Pinhal Novo, não havia estações nem travessas que os seus sapatos velhos de caminhante, sem meias, não levassem a sua figura, barba branca a que o fumo do seu artesanal careto tingia de negro, cabelo grisalho, mas era a sua personagem e presença que o singularizavam e marcavam. Transportava consigo coisas únicas, vivências de uma vida errante, conhecimentos que transportava de terra em terra e a todos era bem-vindo.
O seu valor desregrado, tinha a genuinidade e a generosidade das gentes algarvias serranas, Ti’Manel-da-Vaca-Gorda não o era por ser andadeiro ou caminheiro, não era isso que o tornava puro ou bondoso, mas sim porque era livre como os pássaros, sem gaiolas ou correntes, de quem calcorreava o seu livre destino, voando a sete pés, abraçando tudo e todos, e a todos oferecia a sua presença e o seu convívio, distribuindo novas, músicas, versos e quadras nas tabernas das aldeias, do Sr Arnaldo, da venda do Sr Chico Cezilio, das tabernas do Tio António Rola, do Tio Lucas da Sardoa, (e há quantos anos tem o Manél o café aberto?), perante personagens que o achavam singular, velhos que diziam conhecê-lo, novos que lhe achavam graça, aceitando ou compartilhando sustento, como se fosse um velho eremita regressado.