Fundação do Depósito Votivo de Garvão
Em Garvão, distrito de Beja. A pesquisa arqueológica, desenvolvida na década de 80 do século XX , indica que a primitiva ocupação humana remonta, pelo menos, ao Bronze Final.
No «Cerro do Castelo», uma elevação no interior da própria vila, detetou-se, em 1982, na sua zona central, uma fossa, coberta por lajes de xisto, dentro da qual se encontrava um crânio humano, separado do respetivo esqueleto e com indícios de trepanação.
Estava associado a alguns ossos de animais, bem como a um grande conjunto de cerâmicas pisadas, ao que parece, propositadamente; «talvez os últimos restos de um ritual de sacralização, ou de fundação do depósito, anterior à deposição dos objetos votivos», datado da segunda metade do século III a. C. Ainda na opinião de alguns autores, todo o espólio encontrado poderá implicar a existência de um eventual ritual de libação sacralizadora, relacionado com um sacrifício humano [...] O crânio localizado na base do depósito pertenceu a uma mulher [...] A morte foi-lhe provocada por três golpes desferidos na zona occipital e parietal por um instrumento contundente, pesado, dotado de um gume curvo pouco penetrante, que incidiu obliquamente sobre a cabeça da vítima [...] a vítima encontrar-se-ia deitada em decúbito ventral, quando lhe foram desferidos sucessivamente três golpes. Qualquer um deles seria o suficiente para lhe provocar a morte [...]. A morfologia das lesões sugere que o instrumento utilizado terá sido um machado de pedra polida de que, aliás, se recolheu um exemplar no depósito. O crânio foi então separado do corpo; a forma como isso se deu e o espaço de tempo que mediou entre este facto e a deposição do crânio como elemento ritual na criação do depósito votivo são, no entanto, indetermináveis [...]. Parece certo que, no topo do Cerro do Castelo de Garvão, existiu o santuário a que o depósito secundário corresponde.
Partindo deste exemplo de Garvão, vamos agora examinar quanto as dádivas funerárias ou objetos votivos nos podem também ajudar a fortalecer a hipótese da existência de um culto das cabeças, desde longa data.
Este sítio ter-se-á revestido de uma considerável importância, uma vez que foi reutilizado ao longo dos tempos, chegando ao período romano, como o atesta a presença de duas colunas de mármore de um possível templo dessa época, recolhidas na própria vila de Garvão.
O considerável conjunto de recipientes cerâmicos constituintes de um possível depósito secundário de peças votivas, os inúmeros artefactos pertencentes ao domínio do sagrado, como seriam os ídolos de cornos e os ídolos falange, ajudam-nos a tecer algumas considerações e a incluir este achado dentro da tradição cultual céltica.
Sem esquecer, contudo, que, nas suas datações mais recentes, são já bem visíveis outros sincretismos com tradições especificamente mediterrânicas. Todo o depósito de Garvão continha uma enorme variedade de cerâmicas, objetos de oiro, prata e bronze, cornalinas e vidros, cuidadosamente arrumados, numa vontade aparente de organização do espaço disponível.
O santuário faria parte de um povoado de origem antiga e de longa sobrevivência, e a grande acumulação de ex-votos indicia um ritual público, muito concorrido pela população das regiões circundantes.
Nas suas fases mais tardias, nas sociedades já fortemente hierarquizadas da Idade do Ferro peninsular, os atos de carácter religioso terão sido, tal como os mitos e os seus rituais em épocas paleolíticas, um modo de coesão e de agregação social, e este santuário, «certamente incluído numa mais complexa estrutura com finalidade religiosa», parece ser um dos locais paradigmáticos e demonstrativos de tal contexto organizacional.
A natureza dos objetos encontrados neste sítio arqueológico mostra igualmente que estamos numa época de forte desenvolvimento comercial entre o Ocidente e o Oriente, havendo indícios claros das componentes civilizacionais da chamada civilização tartéssica, da fenícia ou da grega. No entanto, isso não exclui a base étnico-cultural céltica a que pertenceriam estas populações, que naturalmente adotariam não só o que teria significados semelhantes, como o que lhe era exótico, até por uma questão de prestígio social, no que toca aos grupos de elite.
Mas esta componente céltica é reconhecida unanimemente pelos historiadores, mesmo por parte daqueles que continuam a manter a ideia de invasões ou migrações desses povos para a Península apenas no século VII ou VI a. C. Garvão poderá inserir-se, por um lado e pelo que reflete de mais tardio, no culto das cabeças cortadas em contexto guerreiro e, por outro, dentro do culto das cabeças inserido em rituais fundacionais e de soberania.
Quanto ao primeiro contexto, as características e a presença de certos ex-votos podem refletir o que afirmámos no início deste trabalho sobre a existência, também em Portugal, dessa segunda fase evolutiva do culto das cabeças e a sua correspondente importância na afirmação do poder, nessas sociedades da Proto-História. Aliás, já em textos clássicos, como o de Diodoro Sículo (Biblioteca Histórica, XIII, 57, 2), se diz que os soldados hispânicos nos exércitos cartagineses cortavam as cabeças do inimigo, pendurando-as nas suas lanças. E o mesmo parece estar refletido nos desenhos da lúnula de prata (século II a. C.) de Chão de Lamas (Miranda do Corvo, Coimbra). Nesta, no centro e dentro de um círculo trançado, vêem-se duas cabeças decepadas, exibindo uma coroa de folhas e associadas a uma pátera, lanças e punhais.
Ao redor da lúnula, estão representados javalis e pássaros – alusões às deusas de guerra célticas, com formas de pássaro? –, alternando com serpentiformes, motivos recorrentes e de larga diacronia, mostrando claramente o entrelaçar da simbologia mais antiga com a mais recente. Por outro lado, vemos Estrabão afirmar que, entre as tribos lusitanas, «muitas vezes também cortam a mão direita aos cativos e as oferecem aos deuses», o que nos recorda o herói irlandês Cu Chulainn, a quem decapitaram e cortaram a mão direita.
Parece, com efeito, não haver dúvida de que em Garvão se efetuou um sacrifício humano, prática dada como certa entre os povos do Ocidente peninsular da Proto-História, descrita por escritores como Tito Lívio, Plutarco, Estrabão ou Diodoro de Sículo. Estas descrições referem-na ainda como havendo uma «aparente associação de homens e cavalos num contexto ritual eminentemente guerreiro e a importância da dimensão divinatória do sacrifício de vítimas humanas». A respeito desta associação mencionada pela investigadora Maria João Santos, um dos elementos encontrado neste depósito é precisamente a estatueta de cerâmica de um cavalo. Curiosamente, não tem cabeça. Porém, a razão desse facto infelizmente não é concludente, pois pode ter sido acidental.
Mas também se encontrou, isolado, um prótomo de cavalo de cerâmica, possível parte de um recipiente. Mas a autora acima citada, para além de nos dar exemplos dessa associação no mundo indo-europeu, relacionados com sacrifícios humanos de carácter guerreiro, lembra-nos também a tradição céltica existente no Ulster referente ao ritual de consagração real, ou ritual de fundação de um novo reinado, expresso na cópula ou na ingestão de um animal sagrado, como é, entre outros, o caso do cavalo. Um aspecto que merece sem dúvida atenção é o facto de que, na tradição indo-europeia, as festas destinadas às divindades guerreiras se celebrarem habitualmente no solstício de Inverno [...] O sacrifício do cavalo que parece protagonizar estes ritos, sempre relacionados com a figura do rei, assume particular importância, sendo destinado à renovação das forças em declive do monarca no final do ano[...].
Forças essas que estão em consonância com os movimentos cíclicos da natureza, comandados pela Terra-Mãe, transfigurada nas épocas pré-históricas mais recentes nas várias versões das deusas-mães e das deusas da soberania. E, como bem recorda Maria João Santos, na Península Ibérica, este tema subsiste «nas correrias de jovens mascarados realizadas ainda hoje nas festas de Inverno e de Ano Novo do Norte de Portugal». Mencionem-se a Festa dos Rapazes ou a Serração da Velha, em Trás-os-Montes, em que alguns rapazes envergam, ritualmente, trajos femininos (a filandorra – fiadeira – e as madamas) e ostentam máscaras, com uma iconografia animal sugestiva, como uma serpente esculpida no rosto.
É deste modo que esta cabeça de Garvão, ao que tudo indica deliberada e ritualmente cortada, poderá atestar um segundo contexto: o contexto de ritual de fundação, semelhante ao verificado anteriormente com as cabeças de auroque, um par de milénios antes, em possível homenagem a um deus masculino ainda não antropomorfizado, conotado com a energia vital deste animal. Mas os múltiplos restos animais e os vários tipos e formas de cerâmica serão também indicativos dessas refeições e libações rituais que poderiam decorrer, talvez, ciclicamente, como as cerimónias solsticiais, tanto no interior do santuário – para alguns, supostamente os membros da elite sacerdotal e/ou guerreira – como no exterior, para a demais população. E não falta, entre o espólio, um pequeno címbalo de prata, alusivo à realização de práticas musicais, próprias dos banquetes cerimoniais. Em articulação com estas várias facetas, e relembrando os rituais célticos da união – sexual ou através da ingestão de um animal sagrado – entre o rei e a deusa da soberania para legitimação do poder real, parece-nos estar o facto de, neste santuário de Garvão, a cabeça ser a de uma mulher e de haver uma presença marcante de objetos votivos representando a forma feminina.
Disso são exemplo certas estatuetas e peque nas cabeças toucadas ou com penteados atribuídos ao feminino, chegando uma delas a ser conotada com uma divindade indígena, semelhante à Tanit fenícia/cartaginesa ou a Deméter, à maneira do sincretismo religioso já mencionado.
Estes são, certamente, alguns dos sinais possíveis do pensamento mítico céltico acerca do poder da terra e da produção – o terceiro poder, segundo Dumézil –, que residiriam na mulher/rainha, personificação da deusa da soberania.
Outros achados conjugam-se bem com esta interpretação: são múltiplas as placas oculadas, de oiro ou prata, indicando a popularização e a continuação de mitos e práticas cujas origens podem remontar aos vasos e aos «ídolos oculados» do Neolítico, comummente aceites como sendo representações da deusa-mãe, tema a mencionar a seguir. E podemos relacioná-los com outros, muito semelhantes, encontrados em França em Source des Roches à Chamalières (Clermont-Ferrand) ou em Source de la Seine, na Borgonha.
Neste, encontrou-se um vaso dedicado à deusa Sequana, deusa cujo paralelismo com essoutra deusa céltica da soberania, Brigite, foi já referido. Essas peças, devendo reflectir igualmente o resultado de curas, especialmente de carácter oftalmológico, acontecidos por intervenção divina, mostram-nos o possível carácter profiláctico do lugar; mas mostram também a continuidade das crenças que vão prolongar-se pelos tempos cristianizados e chegar até hoje, sempre consubstanciados numa personagem feminina, a divindade, por excelência, da fertilidade, da regeneração e da cura. Dessa cristianização será exemplo Santa Luzia, a quem ainda hoje, bem perto de Garvão, se oferecem ex-votos constituídos por placas oculadas de prata, culto aliás muito difundido também na Andaluzia; emblemática é, igualmente, a sua veneração no Santuário de Santa Luzia, em Viana do Castelo e no Minho.
In: Gabriela Morais, (com a colaboração de Fernanda Frazão), Contributos Portugueses Para O Estudo Do Culto Das Cabeças. 1ª ed. - Lisboa : Apenas Liv