MENCIONADA NOS ASSENTOS DE BAPTIZO
Um dos flagelos da idade Média era a mortalidade infantil e o abandono de crianças. Ou por pobreza, (sem condições para sustentar mais uma criança), ou por vergonha, (caso das mães solteiras, de vários estratos sociais), só na cidade do Porto no século XVIII, foram abandonadas mais de sessenta mil crianças[1].
Para colmatar esta situação, as Misericórdias, nos vários lugares do reino, acolhiam estas crianças, instituindo a roda, aparelho cilíndrico oco com uma abertura onde se depositava as crianças, na parede da instituição que dava para a rua, tipo janela, onde na calada da noite e no anonimato do escuro, se entregavam as crianças e tocavam o sino, a alertar o depósito de uma criança na roda, este mecanismo era construído de tal forma que aquele que expunha a criança não era visto por aquele que a recebia.
Foi instituído igualmente o ofício de rodeira que ao badalar do sino, rodava a roda para o interior da instituição e recolhia as crianças e as amamentadeiras que amamentavam os recém-nascidos, (geralmente alguém que estivesse a aleitar os filhos), pagas para o efeito.
Em Garvão, consta, em vários assentos de baptizo, por volta de 1800, de crianças entregues na roda dos expôstos* e, como exemplo, entre os anos de 1828 e 1877, constam nos registos de nascimento, 167 expostos dados a criar a diversas pessoas da vila.
Constam na área do extinto concelho de Garvão, tanto um terreno denominado Cerca da Enjeitada e nomeação de pessoas como António Enjeitado e descendentes.
Nuns registos, constam simplesmente a indicação de expostos, com a descrição do local onde foi encontrado e a quem foi dado a criar, a data do batizo e os padrinhos, noutros registos, constam igualmente quem encontrou e por vezes indica que vinham acompanhados de uma nota escrita, como o caso de Carolina, batizada a 15/9/1829, a informar que já tinha sido batizada, ou de Cristiana, batizada em 22/1/1873, encontrada na herdade da Fonte Franca, acompanhada por um bilhete a informar o nome que lhe foi posto.
Esta junção de bilhetes com a indicação de nome já posto, ou de outro sinal, era uma indicação para a identificação de certas crianças entregues na roda e, como, em alguns casos, para o reconhecimento de alguns filhos por mães arrependidas.
Noutros lugares onde faltava a roda, estas crianças eram deixadas em lugares escolhidos e na certeza de serem encontrados, maioria dos casos, existe uma proximidade entre os sítios do encontro da criança e o local da residência de mães em amamentação de algum filho ou, até mesmo, junto da habitação de alguns membros dos órgãos gerentes da Misericórdia.
A entrega de uma criança na Misericórdia não era garantia de sobrevivência, de facto a mortalidade das crianças aos cuidados desta instituição, correspondia drasticamente a níveis de mortalidade muito altos, segundo o livro de Marta Páscoa Os expostos em Castro Verde entre 1887 e 1899, a mortandade nunca foi inferior a cerca de metade dos expostos, o ano em que morreram mais expostos foi o de 1894 em que das onze crianças entregues na Misericórdia morreram dez crianças, e o de 1896 em que das 14 morreram 13, o resto dos anos no estudo de Marta Páscoa apresenta uma mortandade entre os 57,1% e os 85,7%, ou seja nos treze anos estudados e dos 144 expostos morreram 110. Era sem dúvida uma mortalidade superior à das crianças não abandonadas.[2]
Durante séculos, a caridade - o amor a Deus e ao próximo - foi enaltecida como uma das mais preciosas virtudes cristãs. O pobre era a imagem de Cristo, e a esmola o gesto com que quem dava redimia os seus pecados, (portanto podia voltar a pecar outra vez).
O pobre, era a salvação da alma do rico, era, pois, necessário a existência de pobres para que os ricos pudessem dar e exercer a caridade e assim a salvação da sua própria alma.
Assim, a caridade era praticada sobretudo pelas vantagens espirituais que quem dava colhia, era indiferente, no fundo, conhecer as causas da pobreza do miserável que estendia a mão.
As instituições, quase todas de carácter religioso que, ao longo dos séculos, recolheram crianças abandonadas, curaram doentes e praticaram outras ações caritativas, estavam imbuídas deste espírito misericordioso. Esta institucionalização das esmolas, mais do que valorizar/dignificar os pobres, procurava vantagens espirituais para quem dava.[3]
[1] Isabel dos Guimarães Sá, Expostos, história das populações e informática. In II Encontro sobre História e Informática. S.l.: Universidade do Minho, 1989.
[2] Isabel dos Guimarães Sá, A circulação de Crianças na Europa Meridional do século XVII: O Exemplo da Casa da Roda do Porto. Boletín de la Asociación de Demografía Histórica, Barcelona, 1992.
[3] História dc Portugal (dir. José Mattoso) IN: PÁSCOA, Marta, Os expostos em Castro Verde entre 1887 e 1899. Castro Verde, Câmara. Municipal de Castro Verde, 1998.