O Sino da Casa da Câmara e o Sino do Açougue[1]
Os sinos concelhios, seja na casa da câmara, no açougue ou na cadeia, constituem um dos equipamentos concelhios simultaneamente mais úteis, mais pitorescos e mais representativos do concelho, do seu poder e da sua jurisdição.
Tratando-se de um equipamento e de um atributo concelhio tão vinculativo, o sino estava patente em praticamente todas as antigas casas da câmara, pois ele pontuava não só a vida concelhia e os seus rituais judiciais, administrativos e celebratórios como o próprio quotidiano da comunidade de vizinhos.
O sino da câmara assegurava tanto os toques obrigatórios da alvorada e do crepúsculo, consagrados nas Ordenações como os rebates mais dramáticos, dos desastres naturais e dos grandes acidentes aos desacatos, levantamentos (as temíveis “uniões” da Idade Média e dos Tempos Modernos) e todo o género de “arruídos” públicos em que facilmente descaíam comunidades por vezes bem carenciadas e indefesas.
O sino era a voz do povo, pelo que o barbante ou a corda do seu badalo estava ao alcance de todos, a começar pelas crianças. Muito facilmente qualquer um o poderia accionar para avisar de um incêndio, de um perigo de afogamento, de um crime, de uma briga, de uma pendência, de um desaparecimento estranho ou de uma aparição miraculosa.
O sino da câmara, enquanto mensageiro de boas e más notícias, tanto era uma causa do abatimento colectivo como o efusivo agente das epifanias mais radiosas. Mas, enquanto voz, ou melhor, enquanto “clamor” dos povos, o sino da câmara era também um agente de revolta, materializado no “tocsin” da tradição urbana francesa, no rebate desesperado de incitamento à luta, à revolta e à defenestração descontrolada de pessoas e bens.
“Toca-se por toda a parte a rebate nas sinetas dos Campanários” – lê-se em certo Memorial anónimo de 1867[2], relatando a revolta das populações de concelhos alentejanos da zona de Castro Verde ameaçados de extinção no âmbito do processo de “arredondamento dos concelhos”.
Em pleno processo de implantação do Liberalismo, no momento em que se processa o arrolamento e a venda dos bens dos conventos extintos, por toda a parte as câmaras cobiçam os sinos das respectivas igrejas, pois os mesmos continuam a ser um equipamento concelhio indispensável. A sua presença apagou-se muito entre nós a partir do Liberalismo, enquanto símbolo do poder concelhio.
In: CAETANO, Carlos Manuel Ferreira – As Casas da Câmara dos Concelhos Portugueses e a Monumentalização do Poder Local (Séculos XIV a XVIII). Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2011. Dissertação de Doutoramento em História da Arte Moderna.
[1] O Sino do Açougue encontra-se presentemente nas instalações da Junta de freguesia à espera de ser colocado no seu devido lugar
[2] Memorial anónimo relativo dirigido à Junta Geral do Distrito de Beja sobre o arrendondamento dos Concelhos da região de Castro Verde, Ourique e Almodôvar, defendendo a “capitalidade” de Castro Verde; N. ass., não datado; mas datável de 1867, in IAN-TT – Ministério do Reino – Negócios diversos relativos à divisão territorial [ano de 1867] – Maço 3148 – Distrito de Beja; em itálico no original.