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Ago 18

Da Vila de Garvão

          Tem-se desenvolvido a temática das Confrarias e Irmandades na vila de Garvão, sejam elas de invocação ao Espírito Santo, como denominadas de Santas Casas da Misericórdia.

          Tem-se agora a noção da existência de outras Irmandades em Garvão, nomeadamente a Irmandade do Rosário dos Brancos,[1] a Irmandade do Rosário dos Pretos[2] e a Confraria do Santíssimo Sacramento da vila de Garvão.[3]

          Este estudo, como o título o indica, leva-nos igualmente para a existência de comunidades de negros em Garvão, (e consequentemente sobre as relações esclavagistas e a sua evolução), cuja existência anda é visível na onomástica da actual população da vila, conforme se verá.

          Assim, ao se aprofundar o conhecimento sobre as duas primeiras Irmandades referidas, vai-nos surgindo, esporadicamente, a menção a outras Irmandades e da mesma maneira que a Irmandade do Espirito Santo está, de uma certa forma, relacionada com os cristãos-novos, (diga-mos judeus e mouros convertidos ao cristianismo), também a Irmandade do Rosário dos Pretos, como o nome o indica, estará relacionada com a presença de elevado número de população negra em Garvão.

          Por consequência, onde havia uma Irmandade do Rosário de Brancos haveria outra de Negros, fruto das divergências internas entre estas duas camadas da população. Existe notícias igualmente que em certas terras a Irmandade do Rosário dos Brancos se juntou à Confraria do Santíssimo Sacramento, Irmandade esta cujos estatutos continham geralmente a cláusula de limpeza de sangue e vedado a “todas as raças proibidas pela nossa santa Fé”. A Irmandade do Rosário de Negros, quando o elevado número de “pardos”, fruto da mestiçagem e integração entre a população branca e negra, era notória, deixou de se justificar e levou ao fim desta.

          A presença de negros em Portugal está atestada desde o século XV e a sua presença no Alentejo, nomeadamente no Vale do Sado tem sido objecto de vários estudos relacionados com a sua resistência a certas doenças, como o paludismo que afectavam a população branca. Julga-se que seria um colonato de escravos, ai estabelecido por serem supostamente imunes ao paludismo, localmente conhecido por febre terçã ou sezões, um mal endémico que durante séculos deixou o território desabitado, eram terrenos insalubres, rodeados de charnecas e pântanos. Traços negroides esses ainda identificáveis nalguns moradores das povoações das margens do rio Sado: cabelo encarapinhado, pele morena, lábios grossos e nariz largo, nomeadamente em Alcácer do Sal, São Romão de Sádão, Rio de Moinhos e São João dos Negrilhos entre outros.

          Apesar de inicialmente, se tratar de uma população estranha, minoritária, marginalizada e alvo de preconceitos pela população branca, pelo seu estatuto não só de escravos, mas igualmente pelas profissões que desempenavam, nomeadamente relacionadas com a agricultura e pastoreio de gados, não deixou contudo de ter um certo impacto, em termos socioeconômicos e demográficos, nas terras onde se fixaram, cuja presença ainda hoje é atestada por nomes de família ou alcunhas, como fulana Preta, fulano Escuro, Moreno, Carapinha, Castanho e Pardo entre outros, assim como na nomeação de certos lugares como Monte da Pretas, Monte Negro, Negrilhos etc.

          É neste quadro de dispersão da população negra e escrava pelas várias vilas do interior alentejano que se fundaram e desenvolveram as várias confrarias negras ainda na primeira metade do século XVI, revelando a existência de comunidades escravas importantes. Embora de cariz religioso cristão, não deixava de se notar certas influências da religião tradicional africana nas suas cerimónias.

          As cerimónias das Confrarias Negras do Rosário eram festejadas de um modo que desagradava aos católicos mais puritanos. Oriundos de uma cultura, cujas crenças exprimiam-se com diferentes modos simbólicos do vasto continente africano, eram sempre vistas, pela nomenclatura católica, como pagãs e obras do demônio, perante as recriminações escandalizadas dos poderes eclesiásticos locais.

          Procurava-se, por conseguinte, frequentemente forçá-los a mais moderação nas suas expressões festivas onde os traços culturais africanos exprimiam-se com maior vivacidade e naturalidade. A história das confrarias religiosas negras é a do conflito entre esta cultura e a representada pela religião católica, maioritária, considerada como a única detentora da verdade e a única aceitável.

          A par desta situação, o poder real sempre se mostrou tolerante e benevolente perante as demonstrações profanas das irmandades negras, chegando a atribuir-lhes uma série de privilégios que lhes permitia, inclusivamente, pagar o resgate dos escravos mesmo contra a vontade dos donos, nomeadamente na confraria da Virgem do Rosário em Lisboa que admitia no seu seio, todas as categorias sociais, independentemente do estatuto econômico e social. Privilégio esse que entrou imediatamente em conflito com os possuidores dos escravos.

          Assim, ainda no século XVI, quando os membros da Confraria eram mistos, os irmãos negros conseguiram eleger vários elementos, dentre eles, para os lugares-chave da Mesa da instituição devido ao maior número de irmãos negros, o desentendimento e o conflito chegaram a tal ponto que a instituição dividiu-se em duas confrarias, a Confraria do Rosário Branca e a Confraria do Rosário Negra.

          A Confraria do Rosário tinha a componente pedagógica da obrigatoriedade da reza diária, parcial ou total, de um Rosário, o que correspondia a cento e cinquenta Ave-Marias e quinze Pais-nossos, o que numa população analfabeta onde dominava a expressão oral, o repetivismo proporcionava-lhes uma melhor memorização e inculcação dos mistérios e dogmas da fé católica

          Como se observou a Confraria do Rosário dos Brancos, em certos casos, ter-se-há associado à confraria do Santíssimo Sacramento, cujos estatutos primavam pela limpeza de sangue, o que, teoricamente, os membros das antigas irmandades do Rosário não podiam fazer parte. Estatuto esse já existente no caracter exclusivista da Confraria dos Brancos em oposição à Confraria dos Negros, embora, em certas terras, haja notícia da existências destas duas confrarias simultaneamente ou melhor, no século XVIII, raras são as paróquias onde estas duas devoções não são implantadas.

              A Confraria do Rosário dos Negros, pela mestiçagem, pela assimilação, pelo fim da escravatura em Portugal, em 1761 e pela proibição da cláusula de limpeza de sangue pelo Marquês de Pombal, em 1773, ditou o fim destas Confrarias dos negros cuja razão de ser deixou de existir.

 

[1] IANTT, OS/CA, Liv. 36, Dez. 1766, Irmandade do Rosário dos Brancos. Garvão. Igreja matriz.

[2] Ano de referência 1766. Também na vila de Garvão houve uma confraria do Rosário dos Brancos, que D. José autorizou, em 1766, a aforar uma herdade. Se havia uma de Brancos era porque existia outra de Pretos. Torre do Tombo, Mesa da Consciência e Ordens, Ordem de Santiago, Chancelaria antiga, Liv. 36, f. 372 v. – 23.12.1766. in: Jorge Fonseca. RELIGIÃO E LIBERDADE, OS NEGROS NAS IRMANDADES E CONFRARIAS PORTUGUESAS (SÉCULOS XV A XIX). CHAM, FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Universidade dos Açores. V.N.Famalicão. 2016.

[3] 1819 – 1846, Grupo de Arquivos Privados dos Fundos pertencentes ao Arquivo da Câmara Municipal de Beja.

publicado por José Pereira Malveiro às 18:43

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