O musicólogo Michel Giacometti, em 1971 na Estação das Amoreiras, para o programa Povo que Canta da RTP.
Quando se fala no cante a despique, – seja no Norte do país ou no Algarve – a noção que se tem é do canto à desgarrada ou ao desafio. Contudo ao se esmiuçar a pergunta e exemplificando o modo particular deste cantar, depressa se chega à conclusão que só neste canto do Sudoeste Alentejano, dobrando a serra para o Algarve, se encontra, de facto, esta peculiar forma de canto.
Contudo, mesmo aqui, se confunde o cante a despique com o canto ao baldão, não fosse afinal esta forma de cante diferente daquela, sem as regras que de facto enformam e tipificam o cante a despique. O baldão será uma forma de canto – à balda – que não obedece às regras que regem o cante a despique, não será mais do que um cante ao desafio, em que o cantador seguinte, começa o seu cante pegando nas palavras do anterior, ao som da viola de arame, (conhecida actualmente por viola campaniça) e ao estilo de qualquer música popular.
Todavia, segundo o programa da RTP, Povo que Canta, (cujo link se reproduz mais abaixo), o cante a despique não deixa de estar desvirtuado da sua forma original e sofrer influências estranhas à sua pureza tradicional, (introduzindo diferentes tonalidades e instrumentos musicais). O despique na sua forma original tem raros interpretes, homens de idade cuja voz já não segura o canto. Os mais novos, como vimos, quando integrados no despique fogem â melopeia ancestral e procuram efeitos fadistas a que os mais velhos nem sempre são insensíveis. O que sobrevive hoje do despique tradicional, portanto e salvo raras excepçoes é uma expressão hibrida que aliás não deixa de ter o seu interesse como produto de aculturação.
Não se encontra igualmente nenhuma outra forma de cante que se assemelhe à estrutura de cante a despique, seja nos outros cantares populares como inclusivamente na poesia portuguesa. A estrutura estrófica, ABCA+BA do cante a despique é totalmente diferente da do cante ao baldão, ABCB+CB, ou por assim dizer de qualquer outra estrutura estrófica conhecida.
Mas mais importante do que isso, - e esta é a grande singularidade e riqueza do cante a despique – é a obrigatoriedade de organizar a estrofe em volta de um ponto pré-combinado e as penalizações daí decorrentes, para quem as falhar, - para além de ter de pagar uma rodada de copos de vinho ou outra bebida, também a humilhação sofrida -. As regras estendem-se igualmente a outras facetas do cante em cada estrofe, como exemplarmente e em devido tempo, António Machado Guerreiro as descreveu em “O cante a despique”,[1] cujo PDF se anexa mais abaixo.
Na combinação estipulam-se as regras, mas uma e inalterável, está fora de combinações, nem sequer se menciona: não vale «pisar o ponto». As outras regras derivam do acordo: não vale (ou vale) «fugir ao ponto»; vale (ou não vale) «fugir à rima» — falta de rima entre o primeiro verso e o quarto; não vale toantes (só consoantes) para ponto; não vale (ou vale) toantes para a rima (1.° e 4.° versos) ; não vale «roubar o ponto» (empregar a terminação ponto— no fim de qualquer verso que não seja exactamente o segundo, que depois se repete como quinto). Combina-se ainda se o que pratica qualquer das faltas bebe ou não bebe vinho na rodada que paga, ou na mais próxima. E parece-nos que são todas as condições. Ë claro que há tantas mais proibições quanto mais reconhecida é a categoria dos cantadores.[2]
Assim desde a falta de rima, noção do que é rima toante e rima consoante, falta de ponto ou pisar o ponto, - repetir uma palavra já utilizada por outro cantador -, constituem regras que não só prestigiam o vencedor, como igualmente humilham quem se engana, vítimas das gargalhadas, troças e críticas mordazes e escarnecedores da assistência. O bom cantador a despique improvisa no momento que vai cantar, nunca utilizará as estrofes de outro cantador, mesmo utilizadas noutra ocasião.
O cante a despique deverá ser, das maneiras de cantar alentejanas, a menos colectiva, nas modas canta o solo e o coro repete, e igualmente assim era (e é) nos «balhos» de roda, dentro de casa ou em redor dos mastros. Nestas modalidades ou no baldão as quadras podiam ser de toda a gente, sem serem de ninguém, e o improviso era o menos vulgar. No cante a despique a estrofe é pessoal, improvisa-se para o momento em que se vai cantar, não se escreve, não se aprende. E se é certo que os bons cantadores fixam estrofes para utilizarem noutras ocasiões, não é menos certo que elas são suas, e um bom cantador não utilizará as que outro tenha criado.[3]
Veja-se igualmente os exemplos dados por António Machado Guerreiro, recolhidos em Colos, nos finais dos anos cinquenta, em torno do ponto ida:
(os dois primeiros versos repetem-se)
Coitado de quem não tem (A)
Nem caminho nem guarida. (B)
Vive aí abandonado, (C)
Sem carinhos de ninguém. (A)
Nem caminho nem guarida (B)
Coitado de quem não tem. (A)
O parceiro seguinte tem de encontrar para o final do seu segundo verso uma palavra terminada em -ida, que é o ponto. Cantará, por exemplo, assim:
(os dois primeiros versos repetem-se)
À falta de saber ler (A)
Há muita gente atrevida. (B)
Se não há conhecimento, (C)
As vezes vão a sofrer. (A)
Há muita gente atrevida (B)
À falta de saber ler. (A)
[1] “O cante a despique”, in Revista Lusitana – Nova Série, 2, Lisboa, Centro de Estudos Geográficos / Instituto Nacional de Investigação Científica, 1981, p. 61.
[2] Idem. P.66
[3] Idem. P. 64