CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIVINDADE CULTUADA
Uma das questões em aberto sobre o Deposito Votivo de Garvão é a identidade da Divindade a que se prestou culto. As placas oculadas recolhidas no depósito, retangulares, trapezoidais ou bicirculares, mostram olhos, quer circulares quer amigdaloides, com os cílios indicados, ou transformados num padrão radial que ocupa toda a placa. São, alegadamente, uma representação dessa divindade. Uma das figuras antropomórficas (infelizmente perdida) era constituída por uma cabeça sobre uma palmeta que desenhava simultaneamente os seios, os membros eram sumariamente indicados. A outra figura mostra uma cabeça toucada (ou apenas com um penteado alto) e um objeto (semilunar?) suspenso sobre o peito (Beirão et al. 1986, nºs 78-79).
Para estas figurações foi apontada, sobre a base de paralelos iconográficos, a assimilação de uma divindade indígena com uma entidade sincrética Tanit / Ashtart / Demeter, o que não seria um fenómeno inédito na Península (Beirão et al. 1986, 217).
Não existe, no entanto, qualquer razão para apontar uma associação a Ataecina (Gomes e Tavares da Silva 1995, 38) senão a geográfica, que é insuficiente. Mas o panteão cultuado foi, muito provavelmente, muito mais complexo do que a investigação de um depósito secundário poderá algum dia indiciar.
In: “Algumas considerações sobre os centros de poder na Proto-história do Sul de Portugal”. Virgílio Hipólito Correia, Revista de Guimarães, Volume Especial, II, Guimarães, 1999, pp. 699-714
ESTRUTURAS CULTUAIS
A existência de estruturas cultuais em núcleos urbanos pré-romanos está bem documentada no Sudoeste Peninsular, entre outros pontos em Capote (Badajoz, Espanha), onde se localizou um depósito votivo primário: um conjunto de peças selado enquanto decorria a sua utilização ritual (Berrocal 1992, 1994). A estrutura a que o depósito se associava era uma pequena câmara, integrada na estrutura urbana do povoado, largamente aberta para a rua.
Um banco onde se empilhavam contentores cerâmicos de uma tipologia particular rodeava as paredes, no centro um altar construído em alvenaria a seco serviu como mesa para uma refeição ritual. Nesta, terá participado, no sentido estrito, um número de pessoas próxima das duas dezenas, logo sendo os animais sacrificados distribuídos pela restante população do povoado.
Neste caso parece não ter existido uma noção clara de culto a uma divindade específica, mas sim um ritual público, gentilício ou supra-gentilício, parecendo difícil que uma estrutura como a de Capote pudesse gerar a acumulação de ex-votos capaz de vir a produzir um depósito secundário com a dimensão do de Garvão (Berrocal 1994, 263-275).
Por outro lado, o povoado a que os romanos conheceriam sob o nome de Mirobriga Celticorum inclui, na sua área mais elevada, um templo cujo estatuto sacro foi suficientemente marcante para que sobrevivesse, com remodelações, até à construção romana do fórum e com ele coexistisse por um período indeterminado (Correia 1995, 244-246).
A prestação de culto a uma divindade num templo como este, poderia, ao fim de um certo período de tempo e dependendo do volume e tipo de oferendas que o costume e a esfera geográfica de difusão do culto acarretassem, levar à necessidade de criação de depósitos secundários.
Depósitos secundários de peças votivas, terão existido com mais frequência em antigos santuários, em qualquer época, do que a arqueologia tem oportunidade de conhecer e estudar.
No seio das sociedades complexas da Idade do Ferro Peninsular, as divindades terão desempenhado um papel muito importante na consolidação das estruturas supra-gentilícias que agregavam a sociedade. O fenómeno de concentração económica, apenas vagamente indiciado pela concentração de objectos cerâmicos,
In: “Algumas considerações sobre os centros de poder na Proto-história do Sul de Portugal”. Virgílio Hipólito Correia, Revista de Guimarães, Volume Especial, II, Guimarães, 1999, pp. 699-714