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Dez 17


O CRISTIANISMO NA PENÍNSULA IBÉRICA
          A mitificação das origens de um estado, mais do que enaltecer um acto genesíaco ou fundacional procura a legitimação da memória histórica baseado numa realidade fenoménica de virtudes, glorificação e de engrandecimento do passado, idealizando uma época que revela o irrealismo prodigioso duma imagem engendrada, mas que no fundo a população têm como garantido e de si mesmos.
          É recorrente na história das nações organizar o passado histórico em função das necessidades do presente, os mitos fundacionais são na maioria dos casos, senão em todos, uma espécie de mitologia em que o historiador adapta a verdade histórica de forma a inculcar uma determinada visão do passado, ficcionando-a e modelando-a ao serviço dos interesses ideológico-políticos tanto do passado como do presente.
          Ao mistificar esta fundação de Portugal em Dom Afonso Henriques, herdeiro duma terra, resgatada ao infiel, que tem a sua origem nos guerreiros lusitanos, procura-se suprimi-la, numa altura de lutas pelos territórios fronteiriços ou de indefinição dinástica, á ocupação ou mesmo ao aniquilamento por parte dos reinos vizinhos como se veio a observar com a ocupação Filipina de Portugal.
          A história de Portugal regista a batalha de Ourique em 25 de Julho de 1139, dia de Santiago, um dos apóstolos que teria difundido a fé cristã na Península Ibérica.
        Os relatos sobre a evangelização da Península por São Tiago são manifestamente tardios e impossíveis de confirmar. A ausência de informações concretas sobre as origens da penetração do cristianismo nesta zona, deu lugar a toda uma série de mitos e até mesmo de tradições.

         Segundo uma tradição lendária, no século IX, na Galiza, um eremita de nome Pelaio, anunciou uma revelação, sobre um túmulo, que tivera enquanto dormia, contendo umas relíquias que foram de imediato veneradas e associadas a Santiago e sobre o qual viria a ser erguida a Catedral de Santiago de Compostela.

          Os árabes invadiram a Espanha em 711 e deixaram, aos ibéricos, apenas o norte da península, conhecida por Astúrias, onde mantiveram uma resistência à dominação árabe. Nesse período, fazia falta aos hispânicos uma figura que unificasse a luta contra o inimigo comum. As dificuldades no acesso aos tradicionais destinos de peregrinação cristã, Roma e Jerusalém, acabam por conduzir muitos peregrinos a Compostela.

          Da mesma forma que os muçulmanos tinham a sua peregrinação a Meca, os cristãos também passariam a ter a sua peregrinação a Santiago de Compostela na Galiza e se nas batalhas os mouros invocavam Maomé, os cristãos passaram a chamar por Santiago, “o matamouros”.

          A lenda do “Santiago-matamouros”, surgiu relacionado com a lendária batalha de Clavijo em Espanha em 25 de Julho de 844, dia de Santiago, onde um rei cristão, em grande desvantagem numérica, desbaratou e derrotou vários reis mouros. A documentação histórica referente a Clavijo é contestada, e tudo leva a crer que foi forjada pelo Arcebispo de Toledo, Rodrigo Jiménez de Rada que terá forjado uma narrativa de traços míticos, na qual milagrosamente Santiago intervira numa batalha a favor dos cristãos na luta contra os mouros, considerada fantasiosa por falta de documentação ou de outras referências credíveis.

          A lenda conta que Ramiro I teve um sonho no qual o apóstolo Tiago teria garantido a sua presença no campo de batalha e assegurado a vitória. De acordo com essa lenda, no dia seguinte os exércitos de Ramiro I, encorajados pela presença do Apóstolo montado num cavalo branco, a lutar contra os seus adversários, decapitando os mouros e ajudando a vitória dos cristãos do rei Ramiro, onde em grande desvantagem numérica enfrentava as tropas muçulmanas.

A BATALHA DE OURIQUE
          Os relatos descrevem o acontecimento da batalha de Ourique em 25 de Julho de 1139, em que um rei cristão, D. Afonso Henriques, em inferioridade numérica derrota vários reis muçulmanos, precisamente no dia de Santiago e apesar de existir vários documentos, desde o século XII, que falam sobre a batalha, a menção ao aparecimento de cristo a D. Afonso Henriques só aparece no século XV, cerca de 300 anos depois da suposta batalha, possivelmente redigida por Fernão Lopes, cronista do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em 1419, numa altura de guerras com Castela.
           Se nos registos anteriores ao século XV, a vitória da batalha de Ourique era atribuída a São Tiago, posteriormente passou a ser atribuída a Cristo, se no campo de batalha, pela disputa dos territórios fronteiriços, os Castelhanos bradavam a Santiago, os Portugueses tinham de bradar mais alto, a Cristo directamente.
          Com a invenção do milagre, a este vai-se acrescentando, nos séculos seguintes, sempre com mais alguma narrativa, conforme os escritores que sobre o acontecimento relatam, até que chegando ao século XIX, Alexandre Herculano as denúncia como meramente fantasiosas e carentes de legitimidade histórica.
          No século XVII, com a ocupação do trono e do reino pelos Filipes Castelhanos, a lenda ganha mais prestígio e precisão pela mão do frade cisterciense Bernardo de Brito.
          De facto não se encontram referências sobre esse acontecimento antes dessas datas, nem na crónica geral de Espanha de 1344, nem nas outras fontes sejam elas portuguesas, castelhanas ou árabes, nem inclusivamente nos documentos mais antigos que se conhecem sobre a vila de Ourique, a carta de doação de feira de 1288 e a carta de  foral de 1290, ambas concedidas pelo rei D. Dinis.
          De referir também que nos primórdios da formação de Portugal o Campo de Ourique não se restringia somente á vila ou concelho de Ourique, era, de uma forma incipiente, geralmente considerado grande parte do território que se prolongava para sul do rio Tejo, portanto falar numa batalha de Ourique seria falar numa região a Sul do Tejo.
          As particularidades das lutas pelo controle do território entre cristãos e muçulmanos não favoreciam a concentração de grandes exércitos ou de batalhas campais, constituídos maioritariamente pela cavalaria pesada da nobreza terra tenente, com armaduras imponentes e exercito pedonal incluindo arqueiros e lanceiros.
          Quando a fronteira do reino de Portugal em 1139 se situava no rio Mondego, era inadmissível situar um exército desta natureza a cerca de quinhentos quilómetros da fronteira e em pleno território inimigo.
          As conquistas das cidades por D. Afonso Henriques e sucessores, faziam-se mais à custa das tropas ligeiras dos concelhos, dos cavaleiros-vilãos, peões e besteiros, ou de intrépidos aventureiros como Geraldo-Sem-Pavor que conquistou Évora, ou trepando os muros na calada da noite como sucedeu em Santarém ou com a ajuda dos cruzados como no caso de Lisboa, as próprias ordens religioso-militares resguardavam uma boa parte dos seus guerreiros na defesa dos seus próprios territórios.
          As vitórias de D. Afonso Henriques contra os sarracenos e as suas ambições politicas em formar um reino independente, carecia de fundamento e do respectivo reconhecimento, nesse sentido haveria de mistificar a fundação do reino na criação divina. As vitórias nos campos da batalha e as conquistas territoriais, tomaram assim uma dimensão fenoménica. Haveria de glorificar e engrandecer as escaramuças, contra o infiel, pela conquista territorial e a expansão da fé, para justificar a pretensão de D. Afonso Henriques a ser rei dum reino soberano e independente.
          Os cinco reis mouros derrotados poderiam equivaler a outras cinco batalhas, emboscadas ou acções de guerrilha, temporalmente apartadas, tomando o nome daquela que no contexto geo-político da época se apresentava mais distante, ou seja depois do Tejo, não deixando, contudo, de ter em atenção tanto as imprecisões localizáveis no terreno como os exageros dos feitos e fanfarronices de cavaleiros. No quadro da imaginária historiografia dos monges alcobacenses, seria «bem mais gloriosa para o rei seu protector» uma vitória obtida lá mais para Sul, bem dentro das terras infiéis.

          Assim, estas escaramuças pelo território, tomou no século XV um sentido mítico-sacralizante do rei e do reino, esta mitificação das origens aparece assim como a peça fulcral, como o milagre que faltava para atestar a protecção divina concedida a este reino desde a sua fundação.

          A concluir no que diz respeito á batalha de Ourique, sob o ponto de vista do espetáculo, da especulação, da teatricalidade, muito pouco há a dizer, sob o ponto de visto histórico podemos recorrer, como exemplo, ao que diz o historiador José Hermano Saraiva no programa da RTP, "A Alma e a Gente", emitido em 26 de Novembro de 2006:

“Por isso eu admiro-me muito por ver aqui à porta da Câmara Municipal, está ali uma placa com uma série de nomes, … e disseram-me “… esses morreram na Batalha de Ourique, no século XII”, “o quê?!” “é”, então comecei a ler. Lá em cima diz Fernão Mendes de Bragança e os seus dois irmãos, Egas Moniz e os seus dois filhos, Afonso vi, o Moço Viegas, o Soeiro Viegas, o Garcia Mendes, o Lourenço Mendes e até lá está o D. Fuas Roupinho. Como sabem o D. Fuas Roupinho era um almirante que parece, também segundo, tudo isso é lenda, … até o D. Fuas Roupinho mataram aqui para fazer aquela lápide. Eu sinceramente discordo dessas invenções históricas, Portugal tem tanta glória verdadeira, tem tantos factos de que nós nos podemos sinceramente orgulhar, que escusamos de recorrer a estas invencionices. Nós não precisamos, graças a Deus, nesse capítulo de episódios gloriosos de roubar nada a ninguém.”

publicado por José Pereira Malveiro às 13:46

A batalha é de 1139. Ainda hoje há documentos do séc XII referindo a batalha. No primeiro documento conhecido pós-batalha D. Afonso Henriques aparece como Rei, o que não acontecia antes.
Ao contrário do que o texto diz, a crónica geral de Espanha de 1344 refere "Despues desto a poco tienpo, ovo otra batalha con moros en los canpos d' Erich e vençiola e gano y grand algo. E tornose para Coynbria rico e onrrado. E fizose llamar de alli adellante rey don Alfonso, el primero rey de Portogal".
"armaduras imponentes" em 1139?... Não existiam "armaduras", apenas cotas de malha.
Anónimo a 20 de Julho de 2019 às 21:41

Agradeço o seu comentário.
Como menciona e muito bem, a Crónica Geral de Espanha de 1344, foi escrita duzentos anos depois e mais uma vez nos interrogamos as fontes em que esta notícia se baseou.
Quanto à observação sobre as armaduras, há notícias da sua utilização desde os Sumérios e Fenícios, embora, obviamente, tenham sofrido ao longo dos séculos, várias formas e feitios. Inclusivamente os Cruzados que auxiliaram na reconquista, muitos deles, envergavam armaduras, umas mais ligeiras do que outras.
cumprimentos

Documentalmente, em Julho de 1139, a povoação e o castelo de Ourique já existiam na zona da batalha, há pelo menos 200 anos, e não há nenhuma prova de que existiam noutros lugares. (vd. o arabista Martim Velho em "A Batalha de Ourique".
Há diversas referências históricas a incursões profundíssimas em território inimigo nesta época, antes e depois... (vd lista de numerosas ações profundas em José Lopes Alves, "A Batalha de Ourique").
Os cinco reis mouros não devem ser interpretados literalmente, mas apenas para indicar a importância da batalha para o Rei português (vd referências a 5 cinco reis inimigos derrotados na Bíblia, Antigo Testamento, terá sido daí que os monges de Santa Cruz tiraram a ideia, julgo eu... Não para inventar uma batalha, mas para mostrar a relevante de uma batalha efetivamente travada).
Anónimo a 20 de Julho de 2019 às 22:07

Acredito que a vila de Ourique tenha uma existência superior a duzentos anos à data da batalha em questão.
Existe, igualmente, provas da existência de outros Ourique nesta época, nomeadamente próximo do Cartaxo e relativamente perto do rio Tejo.
As incursões militares em território inimigo era uma realidade, afinal o próprio Afonso Henriques conquistou várias praças alentejanas.
Mas não foi com certeza o lendário almirante D. Fuas Roupinho a morrer nessa batalha, como consta na placa exposta na frontaria dos paços do concelho.


"Quando a fronteira do reino de Portugal em 1139 se situava no rio Mondego, era inadmissível situar um exército desta natureza a cerca de quinhentos quilómetros da fronteira e em pleno território inimigo."

Então como explicar a tomada de Silves (que era a capital do Algarve) por D. Sancho I em 21 de Julho de 1189?
Anónimo a 23 de Setembro de 2019 às 18:41

Obrigado pelo seu comentário.
As particularidades da reconquista permitia avanços e recuos e já as conquistas iniciais de D. Afonso Henriques no Alentejo foram pedidas.
Às ofensivas de uns sucediam as contra-ofensivas de outros, as cidades foram tomadas e perdidas varias vezes e Silves é um bom exemplo.
D. Sancho, assim como os reis anteriores, beneficiaram da ajuda dos cruzados, Silves só voltou definitivamente para as mãos portuguesas em 1252.
Nesse sentido, 50 anos de diferença, desde a suposta batalha de Ourique à primeira tomada de Silves, nesta altura de avanços e recuos ofensivas e contra-ofensivas, 50 anos faz muita diferença.

Eu não se referia ao tempo, espaço, entre os acontecimentos, mas sim às distâncias entre Coimbra e Ourique que são 357 Km e entre Lisboa a Silves que são 250 Km. Como acha inadmissível que o exército de D. Afonso Henriques tivesse percorrido essa distancia de 357 Km em território inimigo até atingirem Ourique, eu pergunto como é que as tropas de D. Sancho I partiram de Lisboa e percorreram 250 Km em território inimigo até chegarem a Silves?
Anónimo a 23 de Setembro de 2019 às 23:49

Para ser mais objectivo gostaria de lhe responder com outras perguntas que embora não sejam o sentido do artigo, estão de certa maneira relacionadas.
Primeiro: porque é que as conquistas de D. Afonso Henriques no Alentejo, entre elas, Alcácer em 1160 e Beja em 1159, foram perdidas com a ofensiva Almóada?
Segundo: porque é que um novo avanço das forças cristãs sucedeu uma nova ofensiva muçulmana?
Terceiro: Porque é que Beja, inicialmente conquistada por D. Afonso Henriques em 1159, será abandonada quatro meses mais tarde? Beja seria novamente reconquistada em Dezembro de 1162. A ofensiva muçulmana dos Almóadas a partir de 1191, fez recuar novamente a fronteira até ao Tejo, ficando unicamente Évora nas mãos dos cristãos, Beja teria retornado definitivamente à posse cristã entre 1232 e 1234, no seguimento da derrota dos Almóadas em Navas de Tolosa no ano de 1212.
A vitória cristã de Navas de Tolosa, marcou a fragilidade Almóada e permitiu aos reis cristãos da Península, relançarem a conquista territorial para Sul. A ofensiva cristã que se seguiu, permitiu a reconquista das terras perdidas além-Tejo e que marcava a fronteira até Évora.
Depois da conquista de Alcácer e do período de consolidação territorial que se seguiu, em torno desta terra, a reconquista retoma com a tomada de Moura em 1232, Beja em 1232/1234, Aljustrel em 1234, Messejana em 1235 e Mértola em 1238 entre outras terras tomadas aos muçulmanos.
A conquista total do Alentejo é tida em 1238.
Quarto: Porque é que Silves foi capturado em 1189, mas só ficou definitivamente nas mãos portuguesas em 1252? Porque é quê D. Sancho I permitiu aos cruzados chacinarem a população de Silves? Quando já o tinham feito o mesmo á população de Alvor?
O sentido do artigo é a falta de imaginação dos cronistas portugueses em copiarem uma lenda espanhola: o mesmo dia: O mesmo santo: O mesmo contexto de inferioridade das tropas cristãs: O aparecimento divino, cerca de trezentos anos depois: Uma placa na frontaria dos pacos do concelho de Ourique cheia de imprecisões.
É este o sentido do artigo. A teimosia em celebrar acontecimentos dúbios, quando Ourique tem tanta coisa de valor sem roubar nada a ninguém, (parafraseando Saraiva), completamente abandonados e sem serem valorizados como o caso do circuito arqueológico da Cola. Do deposito Votivo de Garvão. Veja-se igualmente o caso da fuga do museu das estelas da escrita do Sudoeste para Almodôvar, quando a maioria das estelas e o estudo de Caetano Mello Beirão, incidir no concelho de Ourique.
Responda-me a estas perguntas e encontrará, com certeza, a resposta á sua.

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