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Jan 23

Depósito Votivo de Garvão

Cerâmicas do Dep Votivo.jpg

       A existência de estruturas cultuais em núcleos urbanos pré-romanos está bem documentada no Sudoeste Peninsular, entre outros pontos em Capote (Badajoz, Espanha), onde se localizou um depósito votivo primário: um conjunto de peças selado enquanto decorria a sua utilização ritual (Berrocal 1992, 1994).

       A estrutura a que o depósito se associava era uma pequena câmara, integrada na estrutura urbana do povoado, largamente aberta para a rua. Um banco onde se empilhavam contentores cerâmicos de uma tipologia particular rodeava as paredes, no centro um altar construído em alvenaria a seco serviu como mesa para uma refeição ritual.

       Nesta, terá participado, no sentido estrito, um número de pessoas próximas das duas dezenas, logo sendo os animais sacrificados distribuídos pela restante população do povoado. Neste caso parece não ter existido uma noção clara de culto a uma divindade específica, mas sim um ritual público, gentilício ou supra-gentilício, parecendo difícil que uma estrutura como a de Capote pudesse gerar a acumulação de ex-votos capaz de vir a produzir um depósito secundário com a dimensão do de Garvão (Berrocal 1994, 263-275).

       Por outro lado, o povoado a que os romanos conheceriam sob o nome de Mirobriga Celticorum inclui, na sua área mais elevada, um templo cujo estatuto sacro foi suficientemente marcante para que sobrevivesse, com remodelações, até à construção romana do fórum e com ele coexistisse por um período indeterminado (Correia 1995, 244-246).

       A prestação de culto a uma divindade num templo como este, poderia, ao fim de um certo período de tempo e dependendo do volume e tipo de oferendas que o costume e a esfera geográfica de difusão do culto acarretassem, levar à necessidade de criação de depósitos secundários.

       Depósitos secundários de peças votivas, terão existido com mais frequência em antigos santuários, em qualquer época, do que a arqueologia tem oportunidade de conhecer e estudar.

       No seio das sociedades complexas da Idade do Ferro Peninsular, as divindades terão desempenhado um papel muito importante na consolidação das estruturas supra-gentilícias que agregavam a sociedade. O fenómeno de concentração económica, apenas vagamente indiciado pela concentração de objectos cerâmicos.

 

In: “Algumas considerações sobre os centros de poder na Proto-história do Sul de Portugal”. Virgílio Hipólito Correia, Revista de Guimarães, Volume Especial, II, Guimarães, 1999, pp. 699-714

publicado por José Pereira às 21:33

12
Jan 23

Ver Publicações (37).jpg

Mais vale roubar do que pedir

 

          Embora, hoje em dia, se pretenda romancear o papel do maltês nas décadas de fome e miséria nos campos alentejanos, o certo é que este fenómeno é fruto das graves assimetrias sociais que se manifestavam essencialmente fora dos períodos de trabalho agrícola, a que os sem terra alentejanos recorriam, com caracter mais ou menos de vagabundismo, principalmente fora do período das ceifas, como José Pacheco Pereira, muito bem, apontou no seu trabalho, “As lutas sociais dos trabalhadores alentejanos: do banditismo à greve”.[1]

 

          Os malteses, trabalhadores rurais durante as ceifas, vagabundos o resto do ano, são responsáveis por numerosos roubos, atentados pessoais, incêndios de searas, rixas, extorsão de comida e outros crimes, cuja fronteira entre criminalidade individual e social, sendo difícil de traçar para cada caso concreto, é nitidamente de carácter social se a analisarmos no seu conjunto.[2]

 

       Ainda na segunda metade do século passado, na vila de Garvão, observava-se que certas pessoas já com uma certa idade e já avós, mas que em certos períodos do ano, tinham a “mania” de se ausentarem de casa durante umas boas semanas e voltarem com taleigos, alforges ou simples sacas cheias de comida, embora não fosse uma actividade ou costume anual, em tempos de escassez era certo que recorriam a este subterfugio.

          Sobre a origem da palavra maltês, esta terá evoluído a partir da vinda para a Europa de largos grupos de pessoas originários da ilha de Malta à procura de trabalho, principalmente depois da invasão da ilha pelas tropas francesas de Napoleão que forçou a saída dos militares da Ordem de Malta que se lhes opunha, por o seu código os proibir de lutar contra outros cristãos.

         A vinda destas pessoas para Portugal poderá estar relacionado com a ajuda militar prestada por Portugal à resistência maltesa contra a invasão francesa, assim passou-se a denominar por “Malteses”, não sé os oriundos de Malta, mas igualmente uma “classe de homens sem domicílio fixo, sem profissão, que vivem às custas dos lavradores”[3], homens esses que vêm a ser conhecidos no futuro como malteses, designado os grupos de trabalhadores que andavam juntos para procurar trabalho, gente solta, sem poiso certo, sem responsabilidades nem compromissos, á procura de sustento em troca de algum trabalho junto das herdades agrícolas.

       Depressa se conotou os “Malteses”, sobretudo no Alentejo, como um grupo ou bando de pessoas com as mesmas e necessidades e caraterísticas, como gente desfavorecida, vadios, vagabundos, pessoas sem escrúpulos, trapaceiros, mentirosos e nos quais não se podia confiar, a mendigos de passagem, indivíduos mal-encarados, pessoas desprezíveis. A palavra “Maltês” passaria a ser empregue sempre com conotações negativas e com sentido pejorativo.

 

        As condições de vida no Alentejo, por meados do séc. XX, eram muito penosas, e o número de pessoas sem trabalho fixo, ou mesmo, sem nenhum trabalho, era muito elevado, sendo a única possibilidade de sobrevivência, a esmola. Parte desses homens que andavam de Vila em Vila, de aldeia em aldeia, e até de Monte em Monte, eram denominados malteses. Ao contrário dos ciganos, que chegavam a permanecer num sítio, por vezes, uma semana; os malteses, esses, nunca dormiam no mesmo sítio mais que uma noite, circulando sempre, entre os locais onde sabiam ter certa uma esmola, quase sempre em alimentos, como sopas de pão alentejano, migas, etc. Mas o maltês da minha infância tem laivos de Romantismo. Refiro-me ao maltês que ecoou no imaginário alentejano feito cultura. Este vagabundo, uma espécie de sem abrigo camponês, sem marca étnica que não a da rebeldia, tipificado como corpo de resistência à ordem latifundiária. Recusando o alinhamento social e os códigos de compromisso ou luta, vivendo da poesia do luar feito almofada e cobertor e de pequenos roubos de alimentos em estado bruto para matar a fome. Permanentemente acossado por guardas republicanos, o maltês estava muito longe do estereótipo do camponês proletário que lutava pelas quarenta horas. Depois, como se sabe, o último maltês não foi morto por um guarda republicano, nem por pancadas de um feitor. O último maltês faleceu por lhe terem liquidado o atrevimento da dissidência, o olhar de vagabundo com que teimava ser livre.

 

       De facto, ainda recorrendo a José Pacheco Pereira e segundo a imprensa dos primeiros anos do século XX continua este coro de protestos contra os malteses. As queixas são permanentes: «são contínuos os roubos pelos campos»; «a praga dos malteses [...] agora infestam a freguesia de Cabrela»; «os malteses e os ciganos [...] constituíram este ano ainda maior flagelo que anteriormente»; «os gatunos andam desenfreados por estas paragens — S. Cristóvão»; «a maltesaria é a praga daninha da agricultura», etc.[4]

        A actuação destes bandos é característica: «É por de mais o desaforo desses vagabundos, que aos bandos assaltam os montes e ali exigem o sustento diário. Os amigos do alheio (a maltesaria) usam agora dum estratagema: munidos de uma foice, andam de monte em monte a pedir trabalho, que eles sabem não existir. Mas pedem também comida e, se esta lhes é recusada, ameaçam os lavradores de grandes prejuízos».[5]

       Claro que nem todas as esmolas eram voluntariamente dadas. Nalguns casos é difícil distinguir entre a esmola e a extorsão de dinheiro e géneros ou o roubo mais ou menos consentido. Quando nos referimos aos vadios e aos malteses, notamos como é difícil distinguir as fronteiras entre estes actos.[6]

        Por outro lado, não deixa de ser relevante a caracterização dos “Malteses” como uma figura romanceada, de um certo registo por vezes ficcionado, por vezes real, de uma época onde o tempo de escrita e o tempo da história colidem, o romance, embora impregnado de verdade humana, não deixa de transcender as condicionalidades temporais. No fundo procura-se romancear o plano humano de uma experiência vivida, enquanto torna o tempo e o espaço do romance irreconhecíveis como momentos e lugares de vivências humanas e sociais.

     Nesse sentido os escritos de Manuel da Fonseca, em torno da personagem do maltês, uma figura recorrente tanto na obra poética, como na prosa do autor. Campaniços, mendigos, vagabundos e malteses são homens em conflito com um espaço físico e social adverso, a quem Manuel da Fonseca dedica uma particular atenção e investe de valentia e coragem fora do comum, exaltando a dimensão heroica no confronto com a sua condição marginal. Homens corajosos e rijos que enfrentam determinados todas as dificuldades e privações, conservando uma dignidade muito própria e uma ânsia de liberdade acima de tudo na vida. Homens insubmissos para com as injustiças e dignos de exaltação.

 

[1] José Pacheco Pereira. As lutas sociais dos trabalhadores alentejanos: do banditismo à greve. Análise Social, vol. XVI (61-62), 1980-l.º-2.º, 135-l56.

[2] Idem, p. 147.

[3] Idem, P. 146.

[4] Idem. P. 146/147.

[5] Idem. P. 147.

[6] Idem. P. 153.

publicado por José Pereira às 21:31

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