Resumo
Pretende este artigo estudar e dar a conhecer um conjunto de estelas discóides, talhadas em xisto grauvaquico, descobertas junto ao Cemitério Velho da vila de Garvão (concelho de Ourique). Estelas estas descobertas fora do muro que delimita o chamado Cemitério Velho, provenientes da necrópole medieval de Garvão. Os enterramentos no Cemitério Velho prolongaram-se até 1937, data do primeiro enterramento realizado no novo cemitério da vila de Garvão.
De realçar, neste conjunto de estelas, o facto de dois daqueles monólitos, conterem iconografia gravada, e/ou em relevo, indicando a profissão dos inumados: um agricultor e um besteiro.
Introdução
Os ritos funerários e o culto aos mortos tem sido uma constante da presença humana desde a antiguidade, as cabeceiras de sepultura utilizadas na Idade Média, nos monumentos funerários, representam uma prática constante da humanidade, transversal a várias culturas e épocas: o desejo de imortalizar os mortos. Estas origens, apesar de difícil temporização, encontram-se desde a pré-história.
Não se conhece quaisquer aspectos relacionados com a referida necrópole medieval, sendo, portanto, este presente artigo inédito sobre esta matéria. A referida Necrópole encontra-se localizada no pequeno cerro a Sul do “castelo” e junto à igreja da localidade. Tem surgido, ao longo dos anos, fragmentos de estelas discóides medievais que os habitantes foram recolhendo e utilizando para as mais diversas tarefas, nomeadamente na construção de muros das habitações ou dos quintais, devendo-se a salvaguarda das estelas, que são o objecto deste estudo, a espíritos mais esclarecidos que as têm salvaguardado, nestes últimos anos, de destinos menos próprios.
O Cerro do Castelo de Garvão ocupa um cerro aplanado, em posição inter-fluvial. Rodeiam-no a nascente a Ribeira de Garvão e a poente a Ribeira de S. Martinho, situando-se o ponto de confluência dos dois cursos de água no lado norte do cerro. As ribeiras, que pertencem á bacia hidrográfica do Sado são marcados por regimes irregulares, notando-se, contudo, vertentes íngremes do seu leito ao topo do cerro da necrópole e do castelo que garantem perfeitas condições de defesa ao local, justificando ocupações desde épocas antigas.
O foral de Garvão data de Fevereiro de 1267 e a vila manteve alguma importância durante o antigo regime, até à extinção do concelho em 1836 e das várias alterações que caracterizaram o regime liberal do século XIX. A passagem da principal estrada de Lisboa para o Algarve: a feira de Garvão (local de comercialização dos rebanhos em regime de transumância que desciam para os pastos do Campo de Ourique), não seriam alheios à importância da vila de Garvão durante o período medieval. Em redor do cemitério velho, hoje desactivado, têm surgido abundantes ruínas e materiais arqueológicos, nomeadamente as estelas discóides que se vai abordar neste artigo.
Os materiais arqueológicos recolhidos no local, tanto no cerro do cemitério velho como no cerro do castelo, reportam-se ao Bronze Final, à II Idade do Ferro, aos períodos romano, islâmico, medieval e moderno. Os trabalhos arqueológicos realizados em Garvão nos anos 80 proporcionaram a escavação de um importante depósito de oferendas e ex-votos da segunda metade do século III a.C.
A parte mais importante da ocupação islâmica e, de acordo com trabalhos arqueológicos recentes, parece situar-se a nascente do cemitério velho e junto à igreja da localidade.
A maioria das presentes Estelas foram achadas, em 1991, no decorrer dos trabalhos de alargamento da via pública, postas a descoberto pela bulldozer da Câmara Municipal, conjuntamente com diversos fragmentos de ossos, cerâmica e várias peças pétreas, numa zona reconhecidamente como prolífera em materiais arqueológicos.
Duas das estelas deste estudo, a estela seis e sete, foram reutilizadas em construções mais recentes, tendo sido posteriormente identificadas e recolhidas pelo autor.
O presente artigo tem, pois, como principais objectivos, dar a conhecer um conjunto, inédito e pouco conhecido, das estelas discóides medievais da necrópole de Garvão.
Suporte, forma e iconografia das estelas discóides de Garvão
Os fragmentos correspondestes ás sete estelas discoides de Garvão foram, conforme referi, talhados em xisto, de tom claro, a rocha mais comum na região.
Estes monólitos exibiam forma bem característica, que alguns autores interpretam como antropomórfica (forma humana), com corpo de contorno circular, ou de disco, e perfil rectangular, com forma cilíndrica, por vezes também nomeados de cabeça assente em pé, ou base, paralepipeda.
Considero, nas descrições efectuadas, como anversos as superfícies decoradas com motivos aniconicos, e como reversos as superfícies decoradas com motivos cruciformes, de clara conotação sagrada. No anverso de duas estelas mostram decorações cruciformes, como também no reverso da estela nº 4, tal como os contendo, em relevo ou gravados, simbologia relacionada com a ocupação profissional, que se julga ser complemento da sinalética religiosa.
Os motivos cruciformes que decoram os reversos e dois dos anversos de cinco dos monumentos estudados, repetem-se em três estelas, apresentando uma delas a mesma decoração, tanto no anverso como no reverso. Estes motivos são muito recorrentes tendo sido descritos no catálogo elaborado por J. Beleza Moreira. As cruzes constituem símbolos do cristianismo e são elementos considerados com alto valor apotropaico.
Em duas estelas que apresentam no reverso motivos cruciformes, nos seus anversos apresentam: Uma um pentagrama em relevo, e a outra um hexagrama que ao centro possui um disco com estrela de seis raios inscrita, ou hexafolio.
Os pentagramas, ou estrela de cinco pontas, estão relacionadas com a fonte da luminosidade, da fonte de luz, o seu carácter celeste faz das estrelas símbolos de espírito e conflito entre as forças espirituais ou da luz e, as forças materiais ou das trevas. A estrela de cinco pontas, tal como o número cinco, é um símbolo de perfeição e da manifestação central da luz, do centro místico e de um universo em constante expansão, traçada entre o céu e a terra representa o homem renegado, radioso como a luz, no meio das trevas do mundo profano.
Através dos séculos houve sempre a preferência por uma estrela de cinco pontas, como figura dos astros de aparência menor do que a do sol e da lua. O planeta Vénus tem sido representado assim e é considerado uma estrela matinal e vespertina, ensejou lendas sem conta. Por outro lado, a estrela de cinco pontas sempre foi, desde tempos remotos e até hoje, o distintivo de comandantes militares, e de generais.
O hexagrama, figura feita de dois triângulos equiláteros sobrepostos, ou entrecruzados, um apontado para cima, outro apontado para baixo, de modo a que o conjunto constitua uma estrela de seis pontas, é uma das representações simbólicas mais universais. Entre os hebreus, cristãos e muçulmanos chama-se Selo de Salomão. Esta figura contém, em primeiro lugar, os quatro elementos: o triângulo com o vértice para cima representa o fogo; o triangulo com o vértice para baixo a agua; o triângulo do fogo truncado pela base do triângulo da água designa o ar; por outro lado, o triangulo da agua truncado pela base do triangulo do fogo correspondendo a terra. O todo, reunido no hexagrama constitui o conjunto dos elementos do universo.
As rosetas, hexafolios ou rosáceas de várias pétalas, muito frequentes no médio oriente, consideram-se como tendo especificamente um significado profiláctico contra o mau-olhado, por outro lado pode figurar o Sol.
Dois daqueles monólitos mostram, no anverso e conforme mencionei, representações de artefactos capazes de indicarem a ocupação profissional dos indivíduos cujas sepulturas demarcavam.
O arado radial indicaria, sem dúvida, a sepultura de um lavrador, ou de alguém associado ao trabalho agrícola. A besta representaria a sepultura de um besteiro, que poderia ter pertencido ao corpo de besteiros do antigo município de Garvão.
J. Beleza Moreira (1987) na sua descrição de cento de dezanove estelas com artefactos de ofícios, somente identifica trinta e nove estelas cujos motivos se podem atribuir ao ofício de lavrador. Destas trinta e nove estelas, vinte e três mostram imagens claras de arados e destas, somente dezasseis apresentam o arado associado a outros instrumentos e alfaias agrícolas. Não figurando somente o arado, mas incluído numa temática com mais símbolos, como a estela de Garvão parece representar, e que não se encontra no catálogo de J. Beleza Moreira (1987).
A temática decorativa pode representar o céu ou um arco-íris, Sol ou Lua, terra arável ou água, temática ainda difícil de ser interpretada com fundamentos credíveis.
As estelas com a representação de Bestas são muitos raras em Portugal. Beleza Moreira (1990 e 1994) identifica duas estelas pertencentes a besteiros. O corpo de Besteiro é uma das mais originais e bem sucedidas experiências da organização militar portuguesa medieval: a milícia dos Besteiros do Conto, criada por D. Dinis em finais do século XIII, marcou presença nas mais importantes operações militares de todo o século XIV e atingia, nas primeiras décadas do século XV, um total de 5000 efectivos provenientes de perto de 300 unidades locais de recrutamento.
Ritual Funerário
As estelas funerárias discóides medievais são indissociáveis dos rituais funerários e das sepulturas dos indivíduos que memoralizavam. Segundo Beleza Moreira (1984), identifica cento e quarenta e oito destes monumentos no Distrito de Beja, sendo este, o Distrito com mais frequência destes monumentos.
As sete estelas discóides de Garvão assumem significado especial, não só por estas serem inéditas em Garvão e em todo o concelho de Ourique, mas pelo facto de serem provenientes da necrópole anexa à antiga Igreja do Sagrado Espírito Santo.
As estelas discóides de Garvão assinalariam sepulturas em fossa, escavadas no solo, e por vezes cobrindo o defunto com lajes de cobertura. Estas sepulturas poderiam possuir pequeno tumulus de terra e, talvez de pequenas pedras, encontrando-se orientadas no sentido nascente-poente, sendo o cadáver depositado, apenas envolto numa mortalha, com a cabeça voltada para aquela última direcção (Gomes e Gomes, 2006).
Tratar-se-ia, possivelmente de gente autóctone, cuja condição sócio-económica permitia este tipo de estelas decoradas, últimas memorias dos mesmos, que ajudariam a personificar através da indicação profissional.
As sepulturas, com estelas ou sem elas, formavam junto à Igreja o cemitério da vila de Garvão, integrado durante a Idade Media na topografia urbana possivelmente amuralhada. A orientação das sepulturas e dos cadáveres, com a cabeça voltada para ocidente e pés para oriente é muito comum na Europa, sobretudo a partir do século XI, sendo idêntica á orientação da Igreja de Cristo, voltada para nascente e para o Futuro. Trata-se de aspecto ritual, adoptado pelo Cristianismo, sendo detectado em necrópoles tardo-romanas e visigóticas, mas estando conotado com o movimento solar e com a ideia do seu renascimento diário, Contudo, a face do cadáver deveria olhar o firmamento ou o Céu.
Este aspecto ritual mencionado, com implicações sócias, reflecte pratica difundida na Europa Cristã.
Cronologia
Segundo Mário e Rosa Varela Gomes, a datação através do método radiocarbono ao esqueleto da sepultura dezassete na sua intervenção em Silves, indica-nos uma cronologia para os séculos XIII ou XIV, tendo em consideração a similaridade entre a estela desta sepultura e as encontradas em Garvão, poderemos apresentar uma data cronológica para a necrópole de Garvão, sensivelmente para a mesma época.
Conclusões
As representações de ofícios em estelas funerárias constituem importantes indicadores da sua importância e da sua distribuição, a uma escala local, contribuindo, também, para a construção de quadros económicos e sociais.
Este artigo resulta da recolha e do estudo, inédito de sete estelas discóides recolhidas em 1991 junto ao Cemitério Velho da vila de Garvão, lugar presumível da Igreja do Sagrado Espírito Santo.
Estas cabeceiras de sepultura seriam provenientes do adro da referida Igreja, onde eram efectuados os enterramentos da população em geral, como era hábito, até à revolução Liberal do século XIX.
A introdução da lei que institui o uso de Cemitérios Públicos e proibiu os enterramentos junto às Igrejas não foi pacífica, provocando várias revoltas populares pela população que queriam continuar a enterrar os seus mortos em solo sagrado.
No caso concreto de Garvão no sentido de manter o Cemitério no mesmo local, preferiu-se demolir a própria Igreja, ao contrário das outras terras que mantiveram a Igreja e construíram um novo Cemitério noutro local.
Esta zona, situada em posição elevada, como que dominando a vila, e dentro da cerca defensiva do primitivo núcleo urbano da vila de Garvão, denota uma cronologia bastante recuada em função dos vestígios achados nesta zona, as próprias paredes, do que agora é conhecido por Cemitério Velho, denota a existência de várias construções anteriores aproveitadas na sua construção, nomeadamente a Igreja do Sagrado Espírito Santo.
O conhecimento desta Igreja é escasso, resumindo-se à menção em vários dicionários chorograficos do século passado como o do Pinho Leal e ao achado de várias peças pétreas como a pia baptismal, três fechos de abobada e as estelas objecto deste artigo.
Arqueologia não é só desvendar o passado é também construir o futuro, o estudo das Estelas Medievais ou Cabeceiras de Sepulturas pretende contribuir, não só para um melhor entendimento das populações desta localidade em tempos medievais, mas de uma forma geral contribuir para o estudo e divulgação desta prática.
Procura-se assim, com este trabalho, efectuar a devida inventariação dos achados enquadrando num contexto local os diferentes aspectos destas estelas, nomeadamente os diversos desenhos que as adornam de carácter religioso, profissional ou económico.
Bibliografia
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DIAS, Jorge. (1982). Os arados Portugueses e as suas prováveis origens. Vila da Maia: Gráfica Maiadouro.
GOMES, M. V.; GOMES, R. V. (2006). Estelas discóides da necrópole da Sé de Silves (Algarve, Portugal). Contexto e cronologia. In: O Arqueólogo Português, Suplemento n.º 3. Lisboa, p. 309-330
MOREIRA, J. B. (1994). Algumas profissões representadas em estelas discoides portuguesas. Cuardenos de Seccíon. Antropologia – Etnografia 10, p. 271-296.
MOREIRA, J. B. (1984). Typologie des stèles discoidales du Portugal. Hil Harriak. Bayonne. P. 319-345 (Actes du Colloque Internacional sur la Stèle Discoidale).
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In: José Daniel Malveiro. Estelas Medievais do Distrito de Beja. Mestrado em Arqueologia, UNL-FCSH, Lisboa. 2013.