No Livro da Misericórdia e do Espírito Santo de Garvão
- O discurso canónico que condena o empréstimo de dinheiro a juros
- A retórica legitimadora: Proibida aos Vivos, Mas Não aos Mortos para Salvação das Suas Almas.
Uma das principais preocupações da Igreja Católica durante a Idade Média foram os juros provenientes dos empréstimos a dinheiro, denominada por “usura” e praticada maioritariamente ou exclusivamente por judeus.
Entendia a igreja Católica que a “usura” era considerada um roubo do tempo que pertencia a Deus. Era entendido como um pecado e foi vigorosamente condenado pelos clérigos católicos, pois o credor obtinha ganho sem trabalhar e lucrava com o passar do tempo. Aos olhos da Igreja, o tempo não poderia ser utilizado como lucro ou outras atividades particulares, pois só poderia ser manuseado por Deus. Era igualmente considerada uma prática desonesta, pois quem emprestava podia-se apropriar, como um ladrão, dos bens do devedor em falta.
A usura é um roubo, portanto o usurário um ladrão. E antes de tudo, como todos os ladrões, um ladrão de propriedade. Thomas de Chobham o diz bem: "O usurário comete um furto (furtum) ou uma usura (usurum) ou uma rapina (rapinam), pois recebe um bem alheio (rem alienam) contra a vontade do 'proprietário' (invito domino), isto é, de Deus". O usurário é um ladrão particular; mesmo que não perturbe a ordem pública (nec turbat rem publica), seu roubo é particularmente odioso na medida em que rouba a Deus. [1]
A dinamização da economia europeia que marca a transição entre o feudalismo e o capitalismo, provocou profundas alterações no mundo cristão, entre uma burguesia que tentava a todo o custo enriquecer e ampliar as faixas de lucro ligadas à atividade económica e os conceitos morais e religiosos cristãos que limitavam o desenrolar do comércio, condenando a obtenção de juros ou rendimentos provenientes do capital emprestado.
Apesar desta resistência, o desenvolvimento do comércio exigia cada vez mais pela moralização do empréstimo de dinheiro a juros. Assim sendo passou-se a assistir, por parte da igreja católica, a uma retórica legitimadora desta prática e inclusivamente realizada por estabelecimentos religiosos, como as Irmandades, Confrarias e Misericórdias, detentoras de imensas quantias monetárias provenientes das rendas do vasto património fundiário deixado em legado a essas instituições religiosas.[2]
Não obstante as discussões dos canonistas sobre o empréstimo de dinheiro a juros, mais preocupados pela implicação desta prática no meio social e por uma análise legal dessa prática, e dos teólogos, que persistiam no seu entendimento, que fazem do empréstimo pecaminoso ao «venderem» tempo, que pertence a todos, e dinheiro estéril e consumível, incapaz de se tornar bem de usufruto e passível de produzir bens, a verdade é que a Igreja e as várias instituições religiosas, evidenciam uma grande capacidade em movimentar dinheiro e conceder créditos a juros.
A tendência será para uma interacção crescente entre a proibição e a legitimação, perante as exigências da evolução e dinâmica económica. Se a Igreja elabora uma doutrina completa e sistemática que incluía definições precisas, isenções e castigos (purgatório, confissão individual, penitência para a remissão dos pecados, doação de bens), as leis civis institucionalizam as proibições, incentivando a ficção jurídica — se não se pode pedir emprestado a juros, então vende-se dinheiro a juros.[3]
Se no caso dos empréstimos a dinheiro e recebimento dos próprios juros, efetuados por estas instituições religiosas eram justificadas pela noção de “Proibida aos Vivos, Mas Não aos Mortos para Salvação das Suas Almas”, em termos de comércio ou desta prática comercial já não havia argumentos morais para a proibir.
De facto, no “livro da Misericórdia e do Espirito Santo de Garvão” que nos chegou até hoje, podemos constatar o uso desta prática a partir de 1808 e em sintonia com as restantes Misericórdias do reino, com o empréstimo de quarenta mil reis, a Manuel Fernandes e sua mulher Maria Loução moradores na Horta do Fidalgo desta vila,[4] prática essa, de empréstimo de dinheiro a juros pela Misericórdia de Garvão, que se prolongará até 1859, data do último registo no mencionado livro.
Em boa verdade se diga que esta não é a primeira menção a empréstimo de dinheiros a juros que há registo em Garvão, embora nas estipulações do Foral-Novo atribuído por D. Manuel em 1512, não conste tal atividade, já o Foral-Velho atribuído em 1256, no reinado de D. Afonso III, consta as Onzenas, referiam-se à especulação agiota, levada a cabo pelas minorias, (judeus, mouros e mulheres), denominados Onzeneiros, originando penhoras com base nas dívidas de carácter prestamista. A Onzena denomina o valor cobrado de onze por dez, ou seja, por cada dez emprestados o devedor deveria devolver onze.[5]
RELAÇÃO DAS ESCRITURAS DE JUROS
(Como consta no Index do livro da Misericórdia e do Espírito Santo de Garvão)
Escriptura de juro de 48$000 rs a Manuel Fernandes, a fl 88 Vº
Escriptura de juro de 52$000 rs a Joaquim Antonio, a fl 100
Escriptura de juro de 50$000 rs a Joaõ Ayres , a fl 101 Vº
Escriptura de juro de 30$000 dados a Catharina da Silva Vª de Joaõ Coelho desta Vª fl 105
Escriptura d'Aforamento dos farrejais do barranco da Sardôa afl 107
Escriptura de juro de 80$000 dados a Francisco Jozé Malveiroº desta Vª fl 109
Escriptura de juros de 24$000 rs Diogo Mendes Lopes de Azevedo desta Vª afl 122 Vº
Escriptura de juros de 24$000 rs dados a Antº Canellas desta Vª afl 123 Vº
Escriptura de juros de 25$125 rs dados a Joaõ Jozé da Roza desta Vª afl 124 Vº
Escriptura de juros de 38400 rs dados a Jozé Mestre das Mocano desta fregª afl 125 Vº
Escriptura de juros de 30000 rs dados a Joaqm Francisco desta Vª afl 129
Escriptura de juros de 24000 rs dados a Antº da Silva Bogado mor n'Aldeya de Stª Luzia afl 130
Escriptura de juros de 24$000 rs dados a Catharina Maria do Monte da Serra freguezia de Stª
Luzia a fls 134 V
Escriptura de juros da quantia de 65$000 a Joaquim Fragozo desta Villa a fl 136
Escriptura de juros de 34$000 dados a Manoel Estevens Canellas desta Villa a fl 137
Escriptura de juros de 60$000 rs dados a Jozé Euzebio desta Villa a fl 138
Escriptura de juros de 25000 rs dados a Manoel Canellas da freguesia de Saõ Martinho a fl 139
Escriptura de juros de 93:500 rs dados a Francisco Jozé Malveiro desta Villa a fl 140
Escriptura de juros de 60:000 rs dados a Antonio Mestre Guerreiro desta Villa a fl 141 Vº
Escriptura de juros de 44:000 rs dados a Joaõ Mendes da Villa de Ourique – a fl 143
[1] Jaques Le Goff. A bolsa e a vida. A usura na Idade Média. São Paulo, 1989, p.39.
[2] Património esse, consideravelmente aumentado a partir do momento em que as Misericórdias começaram a aceitar propriedades, vinculadas a bens de capela, cujos rendimentos se destinavam à realização de obras pias. A difusão do lugar do Purgatório, um espaço onde as almas erravam antes de entrarem no paraíso, destinado àqueles que embora morrendo em estado de graça, ainda precisavam de uma última preparação para terem acesso ao reino dos céus, também forneceu às Misericórdias com avultados rendimentos, provenientes dos bens de raiz deixados a estas instituições para, através de missas e outras obras de caridade, rezarem pelas almas dos testamenteiros.
[3] Inês Amorim, Análise Social, vol. XLI (180), 2006, 693-729, Património e crédito: Misericórdia e Carmelitas de Aveiro (séculos XVII e XVIII).
[4] Fólio 98 verso do Livro da Misericórdia e do Espírito Santo de Garvão.
[5] Carta de Foral-Velo de Garvão, Fevereiro de 1267. Fólio 17 rosto.