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Artigo na revista “Occidente” de 20 de Abril de 1897, da autoria de D. João da Câmara.

 

        O Occidente, Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro, foi uma revista ilustrada editada em Lisboa de 1 de Janeiro de 1878 a 1909. Ao longo das três décadas de publicação foi distinguida com vários prémios nacionais e estrangeiros. Acabou por se extinguir em 1909 deixando um extraordinário património artístico e literário, sendo hoje uma das mais importantes fontes de iconografia da época e o repositório de trabalhos de alguns dos maiores vultos da intelectualidade portuguesa de finais do século XIX.

        D. João da Câmara, (João Maria Evangelista Gonçalves Zarco da Câmara), nasceu em Alcântara, Lisboa, em 27 de Dezembro de 1852 e faleceu em 2 de janeiro de 1908, igualmente em Alcântara. Foi um dramaturgo português e o primeiro português a ser nomeado para o Prémio Nobel da Literatura, em 1901. Desenvolveu a sua carreira profissional nas obras públicas: construção do ramal de Cáceres e das linhas de Sintra e Cascais e chefiou a Administração Central de Caminhos de Ferro.
          Foi no desempenho das suas funções nos Caminhos de Ferro que o terá levado a pernoitar em Garvão vários dias e a escrever esta novela para a revista Occidente.


CHRONICA OCCIDENTAL

          Fóra de todas as praxes tem hoje de ser a minha chronica infiel ao meu dever de chronista; nada sei do que se há passado em Lisboa, nada sei, nada aos ouvidos me chegou. Apenas uns dois ou três jornaes já antigos, encontrados por acaso sobre a mesa da hospedaria, me trouxeram de longe algumas novas, já velhas quando a mim chegaram.
          Mas que importa? Portugal é enorme e não só a capital merece, e muito menos deve merecer, as nossas attenções.
        Falar-lhes-hei d'um cantinho da província quasi desconhecido de Portugal inteiro e que, entretanto, é unta região encantadora.
       Escrevo de Garvão, uma villa muito velha, Gravão, como antigamente se dizia. É no Baixo Alemtejo, no concelho de Ourique.
        Há oito dias que aqui estou, na hospedaria do Xavier, o que pode haver de mais genuinamente alemtejano. Uma casita de taipa muito caiada, muito limpinha, com uma barulhada enorme de pardaes matutinos no telhado, que lhe dá alegria, e um porco morto no domingo, que nos fornece há três ou quatro dias jantares de estalo.
        Mesmo por detrás da estação nos fica a nossa morada. A pequenita do meu hospedeiro a Miraldina, anda ali a entoar uma cantiga, que lhe ensinaram, entre a chilreada dos pardaes. É quasi noite. D'aqui a pouco voam eles de todas essas arvores para os telhados, onde teem os ninhos. E quando anoitecer vai começar um outro concerto. Há uma infinidade de rouxinoes nessa ribeira. E toda a noite cantam. Coaxam as rãs. grillam os grillos. Ouve-se de espaço a espaço um sopro e uma coruja vem todas as noites ao pé da janella illuminada dar-nos uma gargalhada, quando acabamos de cear.
       Quando, depois de muitos annos de vida de cidade, podemos ter o enorme prazer de respirar na montanha um pouco desse ar finissimo, perfumado pelo rosmaninho, parece que a nossa alma toma um banho, que toda essa luz a penetra até ao íntimo, levando-lhe a par, amortecendo-lhe a dor, apagando-lhe a memoria de tanta pequenina miséria que por ahi rasteja.
        O campo vai lindo, embora os lavradores, por balda certa, se queixem sempre. São agora as searas que precisavam de mais uma pinguinha d'agua. Estamos em abril no tempo das águas mil. Há de a chuva chegar a tempo
         Nunca vi tanta flor junta como ahi por esses cabeços. A esteva está toda florida. É um mar verde e branco todo elle a ondolar. Em cada tronco abrem-se dez a doze flores enormes, a maior parte com cinco, uma ou outra com seis pétalas. Ao pôr do sol começam as flores a enrolar-se devagarinho, vão fechando-se em botão, mal se lhes percebe uma pontinha de branco, que fica espreitando para dar signa da aurora. E juntamente com as estevas crescem ahi por toda a parte as urzes, o rosmaninho, o alecrim. A ribeira está cheia de golfos, brancos nos sítios em que as águas dormem á sombra dos choupos e das azinheiras, que sobre ella se debruçam.
        Não há paizagem mais serena do que esta, nem mais preferida pela profusa variedade das aves de Portugal.
          É agora defeza á caça e fielmente é aqui por todos cumprida a lei. Andam ansiosos os caçadores pelo mez de julho. Levantam-se-nos perdizes a cada passo. Onde se roce um pouco de moita, apparecem logo tocas de coelhos. E, caso raro onde tanto coelho existe, abundam por aqui as lebres.
        O ar é constantemente cortado pelas aves mais variadas. Resoam as andorinhas, vão ondulando os bandos dos pintasilgos, os trigueirões riem em todas as arvores com ar trocista, os melros assobiam nas balsas, as milharucas, que parecem feitas de pedras preciosas, gritam, voando em círculos á procura das abelhas, os gaios berram fugindo de arvore para arvore, as põppas e as pegas fazem os ninhos nos troncos velhos das azinheiras, os corvos aos pares andam grasnando muito alto, e, mais alto do que elles, traçam grandes círculos as aguias caçadoras.
           Pouco se trabalha no campo neste momento. Apenas um ou outro pastor se encontra levando o rebanho atravez da serra.
           A grande riqueza da terra são os montados de azinho, que por ahi cresce formando por vezes cerradas florestas. Próximo d'aqui abundam os sobreiros. Em Carvão está-se construindo, por conta do sr. Rodolpho Torres uma vastissima fabrica de rolhas.
          Ainda é a cortiça uma das maiores riquezas da nossa terra menos sujeita do que o vinho à concorrência.
           A gente da terra é como a de todo o Alemtejo, intelligente, paciente no trabalho, honrada e humilde. Alguns do povo teem graça e ajuda-os a maneira de falar, uma cantoria especial, que já tem o que quer que seja de algarvio.
           Há dias, um cabreiro espantado deante d´um theodolitho perguntou a um trabalhador o que é que se via pelo oculo:
             — A tua avó, Santa luzia, Collos e o Vasco da Gama.
            Esta mistura de coisas embasbacou o cabreiro que quiz olhar e não viu nada senão uma bandeirola espetada com as pernas para o ar.
           Depois disto o mesmo trabalhador explicou que o Vasco da Gama era um homem, que tinha uns restos mortaes d'um cadáver que era também de muitos outros.
          Daqui a pouco começam os bailes, exactamente quando elles em Lisboa acabam. Para sabbado de alleluia annuncia-se o primeiro. E' uma notícia para o high-life do Occidente.
      Aqui vão quatro cantigas ao acaso, com todas as suas incorrecções, algumas dellas com verdadeira poesia:

 

Fui ao jardim colher trevo,
Achei o trevo colhido
Sem o trevo não me atrevo
A tomar amores comtigo.

 

No jardim vi uma rosa,
E colhi a meiga flor.
Era linda e tão mimosa
Como um suspiro d'amor.

 

Puz-me a pescar em um mar d'oiro
Com boias de amor tyranno.
As boias foram ao fundo,
Pesquei um eterno engano.

 

Quando eu conversei comtigo
N'aquella sala escura,
Mais valia que atirassem
Com meu corpo á sepultura

 

        Pela música com que são cantadas estas cantigas, percebe se ainda talvez a origem árabe d´esta população do Alentejo. Na alegria do canto há tons melancholicos, suspensões, conclusões que não se esperam, fóra das regras, fóra da logica. N'isso consiste a sua belleza principal e, quando a gente a ouve na charneca, entoada por algum pastorsito, sente uma impressão extranha.
           O verão é o grande tempo das festas e ainda hontem vi o programma das que em Garvão se realisaram o ano passado, no mez de setembro, Missa, carros enfeitados, danças ao ar livre, fogo de vistas e toiradas.
          Do valle do Tejo até é fronteira do Algarve, sem toiros é que não há festa possível. Entretanto nada mais diferente das famosas corridas de Lisboa, Setúbal, Cartaxo ou Santarém, de que estas toiradas que por aqui se realizam sem programma, sem cavalleiros„ sem capinhas e até às vezes sem touros.
       O que torna o espectaculo deveras attraente é a alegria dos espectadores, em cima dos carros, em pé sobre os palanques, às janellas ou às portas das casas, porque uma praça em qualquer sitio se improvisa de um dia para o outro.
       Não há farpas. O boi é chamado por toda a gente que na praça o quer chamar. Às vezes dez, vinte, quarenta ou cem, todos o chamam ao mesmo tempo. O boi olha espantado, foge, corre. Às vezes na carreira apanha um homem e atira-o ao ar. É a sorte. Toca a música. E todos aplaudem, gritam. No sol que dardeja raios d'oiro que sobem á cabeça e embebedam, vai uma alegria immensa! Sai outro boi, continua a festa, sempre assim, sempre com novas peripécias e a alegria sempre a mesma!
       O verão está-nos á porta. Dentro em pouco todas essas searas, por ora tão verdes, vão amarellecer, ondular á brisa de maio e na grande chapa d'oiro a alastrar-se opulenta pelas encostas da charneca onde voam os perdigotos, nas clareiras dos azinhaes, hão de baloiçar-se como robins as papoilas vermelhas. Os pastores indifferentes com as mãos cruzadas sobre os cajados em forma de báculos, o queixo sobre as mãos, olharão descer o sol esplendido nas nuvens iriadas e contarão as horas vendo a Barca a girar em volta da Tramontana, na grande paz, na grande quietação da noite cheia de cantos, opulenta de perfumes.
           E' uma região linda esta que se estende d'aqui até ás praias do Algarve, mais severa no Alemtejo, mais risonha desde que, transposta a serra, cometam a avistar-se os figueiraes alinhados, as amendoeiras, as alfarrobeiras, que são a grande riqueza duma província meridional, transformada pelo esforço duma raça activa n'um delicioso jardim.
          Merecem bem uma visita todas estas vilas e aldeias. Um perigo apenas: é que as estraguem. Que o que ellas teem de melhor é a gente.. que não se encontra.

João da Câmara.

publicado por José Pereira Malveiro às 06:17

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Jun 20

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Rua Nova-1.jpg chaminé 13 (2).jpg

As chaminés alentejanas
E os minaretes muçulmanos.

          Não diferem muito, as chaminés de Garvão, das que se observam no Sul do país, ou mais precisamente das chaminés algarvias, onde, estas intrincadas obras de arte sobressaem das, por vezes, monótonas paredes de taipa caiadas de branco.
         Reminiscências mouriscas dos minaretes muçulmanos? Ou talvez não, o certo é que se se encontra alguma polaridade disfarçada na riqueza arquitetónica destes monólitos, como que a esquecer uma outra cultura, proibida, perseguida, desfigurada.
          Dos outros.
          Quando, afinal, os outros somos nós.
        Há algo de ancestral nesta forma singular de construir chaminés, mais parecem pequenas torres brancas, como uma erupção violenta em direção ao infinito, num mar de telhas vermelhas da cor do sangue, como recordações saudosistas dos minaretes árabes, de um passado não muito longínquo.
     Sejam em redondo, quadradas ou retangulares, as chaminés do Sul refletem toda uma influência de cinco séculos de ocupação muçulmana, seja no subconsciente, seja na tradição, ou seja, na cultura intrínseca a todos os povos, “a saudade do minarete a palpitar timidamente, no rebuço cristão da chaminé”, como alguém já escreveu.
       A chaminé das casas alentejanas são um dos elementos, que melhor refletem o apelo à tradição, para além da sua utilidade, tinha grande valor estilístico e ornamental, sempre presentes na arquitetura tradicional do Sul, herdeiras de uma cultura árabe, onde se nota os rendilhados e arabescos, de pequena ou grande escala, conforme as posses dos moradores e símbolo de um estrato social.
        Em Garvão, talvez devido à sua proximidade com o Algarve e à devida influência mourisca, ainda são visíveis alguns notáveis exemplos desta arte, uns a precisarem de reparos, outros primorosamente caiados de branco, outros infelizmente tombados, mas que as fotos antigas nos dão a conhecer.

publicado por José Pereira Malveiro às 10:09

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