A Pedra Escorregadia e o Pego do Sino
Culto Pré-Cristão Cristianizado
Segundo o historiador José Hermano Saraiva no programa da RTP, "A Alma e a Gente", emitido em 26 de Novembro de 2006, sobre Ourique e no qual menciona a Senhora da Cola, menciona que este culto e devoção, seriam as reminiscências de um culto pré-histórico, praticado pela população local, que deveria ser numerosa na altura, tendo em conta os povoados, necrópoles, antas e outros testemunhos desse passado, que têm sido encontrados na região.
Havia aqui uma tradição muito antiga, um culto, um culto que vinha não se sabe de quando, mas que na fase cristã era um culto da mãe, da mãe. Um culto de Nossa Senhora aqui do Castro da Cola, é claro, era a Senhora da Cola, e as mulheres que queriam ser mães, vinham aqui numa peregrinação, continuam a vir, é em Setembro, e são romarias de milhares e milhares de mulheres que vêm fazer uma festa. A imagem está ali, veem-na lá em cima e ela segura numa das mãos um menino, na outra das mãos um fruto. Eu sei que aqui se discute se o fruto é uma pêra, se o fruto é um figo, eu julgo que é apenas um fruto, aquilo é uma ideia da Ave Maria, Ave Maria que diz que “bem dito é fruto do vosso ventre”, portanto é um culto da maternidade, da mulher mãe, é o fruto que ela mostra, e do outro lado o seu menino. Bom, este culto continua até hoje. Uma coisa curiosa, o que sai na procissão não é a imagem verdadeira que está além, dizem que aquela é a senhora, o que sai é esta que está cá em baixo, que dizem que é a criada, quem sai a fazer o trabalho é a criada, quem fica no seu trono é a senhora. Reparem como isto é ainda um vestígio medieval. 1
De facto, à semelhança de outros lugares, o culto da Senhora da Cola, remonta ao período pré-histórico e seria um culto, não só dedicado à fertilidade feminina como o historiador José Hermano Saraiva menciona, mas igualmente devotado à fertilidade dos campos e animais, como ainda nos anos sessenta do século XX se observava nas preces e nas ofertas em géneros agrícolas que se depositava na portinhola lateral da Igreja, cuja função era precisamente receber tais ofertas.
Contudo, segundo José Leite de Vasconcelos,2 a relação da fecundidade das mulheres e a esperança de um bom parto, encontra-se igualmente presente neste lugar. Tanto mulheres como homens procediam a um ritual de escorregarem numa formação rochosa natural, denominada por Pedra Escorregadia.
Numa ladeira que vai ter ao barranco da Horta do Marchitão ve-se uma lage natural a que se chama Pedra escorregadia, porque ai vão deixar-se escorregar homens e mulheres no dia da festa. O atrito fez que já se produzisse grande sulco ou rogo na pedra. Qual a razão d'este brinquedo? O povo não m'a disse quando estive na Cola, mas tempo depois ouvi contar que havia ali uma lage por onde as mulheres gravidas iam escorregar-se para serem felizes no parto. Se a lage é a mesma, como suponho, temos a explicação quanto ás mulheres. Falta quanto aos homens. Noutras terras de Portugal existem costumes analogos I, bem como lá fóra, por exemplo, em França2.
(NOTAS de RODAPÉ: 1 Vid. as minhas Trad. pop. de Portugal, § 203. 2 Vid. P. Sébillot, Le Folk-lore de France, I, 335 sgs.)
Segundo Mircea Eliade, 3 Em algumas religiões acredita-se que a Terra Mãe é capaz de conceber sozinha, sem o auxílio de um companheiro. Encontram-se ainda os traços dessas idéias arcaicas nos mitos partenogênese das deusas mediterrânicas. Assim as mulheres estéreis procuravam engravidar, ao escorregarem na lage, depois das mulheres fecundadas nesse dia.
Com a chegada do Cristianismo, era costume a nova religião, conquistadora, assimilar e moldar a seu proveito os cultos indígenas locais, como aconteceu não só neste caso, mas igualmente noutros lugares sagrados pré-cristãos. Essas religiões, pré-históricas, tinham um grande contacto com a natureza. A sacralização dos lugares campestres, por vezes manifesta-se nos mais diversos lugares, sejam em árvores,4 cursos de água,5 ou outros acidentes ou formações naturais, como certos relevos rochosos.6
A religiosidade, dos povos autóctones, consagrava-se, assim, na adoração de locais naturais, fontes e rios, adorando e respeitando o espaço tribal. Os cursos e os pegos de água, eram assim, em certos lugares, considerados sagrados, pelas suas capacidades de cura e processos de regeneração de traumas físicos.
Era assim no Pego do Sino, na ribeira do Marchicão, junto ao santuário, até aos anos sessenta do século passado,7 a que se atribuíam propriedades traumatúrgicas, onde os crentes se banhavam num processo mítico-religioso de esperança de cura das maleitas ou ferimentos que os afligiam. Esta tradição do banho sagrado no referido pego e a fecundação das mulheres, como se observou no caso da Pedra Escorregadia, poderá estar na origem da religiosidade deste local.
A partícula Sin, encontra-se igualmente em Sintra e Sinai, relacionados com o culto da Lua. O Pego do Sino seria o pego da Lua, e em termos teóricos o termo poderia-se igualmente estender à elevação que o cinge , (como em Sintra e Sinai), e onde assenta o Castro da Cola e o actual Santuário, antes da presente designação de Marachique ou Marchicão.
(1) - José Hermano Saraiva no programa da RTP, "A Alma e a Gente", emitido em 26 de Novembro de 2006.
(2) - O Archeologo Português, Volume XXIX 1930-31_ edição de 1934, José Leite de Vasconcelos, Excursão ao Baixo-Alentejo, 1897. P. 239.
(3) - Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, São Paulo, 1992. P. 153.
(4) - Como se observa na tradição Celta e ainda hoje se encontra nos santuários Xintoístas.
(5) - Como ainda hoje se assiste com o Ganges, rio sagrado para os Hindus.
(6) - Como é o caso do monte Ululu (Ayers rock), para os aborígenes australianos. Ou de tantos Montes-Santos que se encontram em Portugal. De notar igualmente, a formação geológica de dois sulcos naturais paralelos no terreno, da era do gelo, associados a um alinhamento astronómico, cujo sentido aponta na direcção do Solstício de Verão e cuja associação religiosa/astronómica levou, no final destes sulcos, à criação do santuário de Stonehenge.
(7) - Ainda na década de setenta do século passado, havia uma Srª em Ourique que só bebia água da fonte do Moinho do pego do Sino, não se sabendo se a podemos enquadrar numa vertente de tradição local ou familiar, passada às sucessivas gerações, ou se se trata de um episódio recente, mais do âmbito da moderna religião.