23
Out 19

Mário Varela Gomes
O Oriente no Ocidente. Testemunhos iconográficos na Proto-história do Sul de Portugal: smiting gods ou deuses ameaçadores.

      O desenvolvimento socioeconómico e cultural das populações que, sucessivamente, ocuparam o território a que hoje corresponde o Alentejo e o Algarve, beneficiou de intensos contactos com o Oriente, maioritariamente através do Mediterrâneo. De facto, tanto o processo lento de neolitização desta área ocidental da Europa, como inovações tecnológicas (arado, roda e carro) ou religiosas, detectadas naquela região durante o Neolítico final, como novas formas e soluções arquitectónicas, de índole militar e ritual, a tecnologia calcolítica da exploração e fundição do cobre ou, posteriormente, do bronze e do ferro, devem-se a estímulos provindos do Mediterrâneo Oriental.
        Nos últimos séculos do II milénio a.C., sucessivos influxos étnicos e culturais extrapirenaicos, de fi liação indo-europeia e resultantes dos grandes movimentos populacionais registrados sobretudo no Sul da Alemanha e na bacia danubiana dão origem a um panorama cultural inovador e à Proto-história peninsular.
          No Sudoeste Hispânico estes contributos, que oferecem ao nível do acervo material artefactos relacionáveis com os do Hallstatt A e B centro-europeu e do Sul da França (espadas pistiliformes de bronze, cerâmicas penteadas, incisas e excisas), irão misceginarem-se não só com as culturas autóctones (Bronze do Sudoeste) como receber as contribuições trazidas pelos mercadores orientais, nomeadamente fenícios e antes, mesmo, de ali fundarem as suas feitorias.
           Também as influências culturais provindas por via continental, através da bacia do Ebro e da Meseta, não se encontravam isentas de aspectos orientalizantes. Estes detectam-se nas armas e em outros artefactos de prestígio, produzidos em diferentes áreas do Mediterrâneo Oriental, designadamente nos discutidos escudos redondos com escotadura em V, tal como nos capacetes de cornos ou nos carros de combate bem representados nas estelas decoradas, de «tipo estremenho», da Idade do Bronze final, melhor conhecidas na Meseta e na Estremadura, e, ainda, em peças de ourivesaria. Um conjunto de trinta e cinco contas de pasta vítrea, de forma anular, elipsoidal ou cilíndrica, translúcidas, com cor amarela, castanha ou azul, recolhidas na necrópole da Idade do Bronze da Atalaia (Ourique), de provável manufactura egípcia ou milénica, são não só os mais antigos objectos de vidro conhecidos em Portugal como a sua presença testemunha significativas trocas comerciais, devidas à riqueza mineira da região, com os prospectores e comerciantes de metais originários do Mediterrâneo Oriental, em torno à segunda metade do II milénio a.C.
           O desenvolvimento dos contactos entre as populações do Sul de Portugal e as diferentes áreas do Próximo Oriente culmina, por um lado, com a fixação de entrepostos comerciais fenícios, como as instalações e os materiais descobertos em Castro Marim, Rocha Branca (Silves), Monte Molião (Lagos) e Alcácer do Sal permitem supor, e, por outro, com a implantação, naquela área, da I Idade do Ferro do Sudoeste; Surto civilizacional com origem exógena, que floresceu entre os séculos VIII e VI a.C., sob influência do legendário reino de Tartessos. Esta população, tida como pré-indo-europeia e que as fontes clássicas identificaram com os cónios, viviam em pequenos povoados abertos do tipo dos actuais «montes» alentejanos, devendo integrarem-se num sistema económico-social emergente da Idade do Bronze final, do tipo das chefaturas, administrativamente centralizado em cidades onde residia o poder político e militar.
        As casas mostravam a base das paredes construídas com pedra, argamassadas com barro, e a parte superior de taipa e adobes, com travejamentos de madeira, sendo, talvez, cobertas de colmo; processos construtivos comuns a todo o Mediterrâneo mas que encontram protótipos mais recuados na Ásia Menor, na Palestina e no Egipto.
            As necrópoles, sempre perto dos povoados, são formadas por conjuntos de túmulos de pedra, de planta circular (os mais antigos) ou rectangular, por vezes rodeados por muretes e degraus, cobrindo as fossas onde se inumavam os cadáveres ou, mais raramente, se recolhiam as cinzas das incenerações.
           As oferendas funerárias são ricas (fi g. 1), tendo-se descoberto verdadeiros tesouros (Gaio, Fonte Santa), que incluíam objectos de adorno, de ouro, de prata e bronze, contas e pendentes de pasta vítrea, de resina e de pedras semipreciosas, assim como escaravelhos, pulseiras, xorcas, anéis, armas de ferro (folhas e contos de lança e dardo, facas) e cerâmicas (formas carenadas, fabricadas sem roda, ânforas fenícias e massaliotas, taças e pratos de verniz vermelho fenício, cerâmicas cinzentas e peças coroplásticas). Um vaso em forma de prótomo de touro e outras pequenas peças zoomórficas denunciam-nos influências do mundo egeu e próximo-oriental, assim como das estruturas mítico-religiosas ali encontradas, associando os atributos de divindades agrárias e fecundantes (touro e pombas) com outros de carácter funerário ou infernal (cisne, felino) (fi g. 2).
             O mais importante elemento de caracterização é, sem dúvida, o conjunto de estelas epigrafadas encontradas nas suas necrópoles, conhecendo-se hoje cerca de setenta exemplares.
              Esta escrita, de estrutura alfabética, é a mais antiga da Península e uma das mais recuadas do Ocidente Europeu. Originária do Leste do Mediterrâneo, encontra paralelos nas escritas minorasiáticas da Lídia, Licínia, Cária e Fríngia, no grego arcaico (eídio e jónio) e no etrusco, revelando uma raiz comum no modelo semítico da Síria do Norte. A I Idade do Ferro do Sudoeste é, assim, responsável pela introdução de três importantes inovações culturais: a redução do ferro a cerâmica fabricada ao torno rápido e a escrita.
          No século V a.C. e nos inícios do século seguinte, profundas transformações culturais, sobretudo mesetanha, criam a II Idade do Ferro, sem escrita, e um novo equilíbrio territorial e socioeconómico, reduzindo-se os contactos com o Mediterrâneo Oriental, subsequentemente reactivados com o comércio púnico, que, a partir dos finais do século IV, se implantará, quiçá, de forma exclusiva, naquela região. Estas populações praticam o ritual da incineração, recolhendo as cinzas e os fragmentos ósseos dos seus mortos em urnas que enterram, por vezes na periferia das necrópoles da I Idade do Ferro (Fonte Santa, Abóbada, Fonte Velha), acompanhadas por armas de ferro, elementos de adorno e outros objectos (facas, fíbulas, cossoiros, etc…).
          A sua instalação está bem documentada em grandes povoados fortificados do Sul de Portugal (Alcácer do Sal, Miróbriga, Cabeço de Vaiamonte, Mesa dos Castelinhos), assim como no grande santuário que um enorme depósito votivo secundário, indica ter existido em Garvão (Ourique). Neste local prestava-se o culto a uma divindade feminina do tipo da Tanit cartaginesa, senhora da luz, da felicidade, mas também da morte e da regeneração a quem se ofereciam ex-votos, alguns anatómicos, de ouro e prata, além de peças coroplásticas e grande quantidade de recipientes com diversas formas e funções. A partir do século III a.C. até à romanização, o Sul de Portugal será dominado pela influência económico-política cartaginesa e pela rica cultura ibérica da região levantina da Península (Beirão,1986; Beirão e Gomes, 1980; 1983; 1984; 1988; Beirão, Silva, Soares, Gomes e Gomes, 1985;1987; Gomes, 1983a; 1986; 1986a; Gomes e Gomes, Beirão e Matos, 1986).

 

Gomes, M. V. — O Oriente no Ocidente. Testemunhos iconográficos na Proto-história do Sul de Portugal. Revista ICALP, vol. 22 e 23, Dezembro de 1990 / Março de 1991, 125-177.

publicado por José Pereira Malveiro às 21:41

07
Out 19

Garvão Serro do castelo2.jpg

          Segundo Ana Margarida Arruda, o Cerro do Castelo de Garvão, apresentava-se, como o povoado central de pequenos aglomerados ou habitats limítrofes. A existência do seu santuário, cujo Depósito Votivo, posto a descoberto, aponta para um local de culto de grandes dimensões, sinónimo da sua importância e predominância na região, leva a crer que o Cerro do Castelo de Garvão seria o local onde se centravam os mecanismos de controlo, não só religiosos, mas, também, de coesão social e económica dos grupos circundantes.
          A sua supremacia, conjugando uma potencial riqueza agrícola com o acesso, sem intermediários, aos metais, estender-se-ia aos povoados limítrofes. De facto o Cerro do Castelo de Garvão, situado entre a peneplanície, do rio Sado, a Norte, rica em solos agrícolas, e a região Sul, associada ao rio Mira, rica em metais, permitiu uma superioridade económica e estratégica conduzindo-a a uma afirmação como centro religioso-político-económico da região.
         As sondagens arqueológicas efectuadas, forneceram materiais cerâmicos com a decoração denominada “retícula brunida”, própria do Bronze Final.

          O modelo de subordinação revelar-se-ia também verosímil no caso de se considerar que a importância que o Cerro do Castelo de Garvão detém na II Idade do Ferro só podia ter tido origem numa presença imediatamente anterior. Sendo frequentes as informações sobre a sua ocupação durante o Bronze Final (Beirão et al., 1985, 1987), não é de facto de desprezar a hipótese de o sítio ter estado ocupado durante a I Idade do Ferro.
         Neste caso, o Cerro do Castelo de Garvão apresentava-se, de facto, como um potencial “Lugar central”. A sua supremacia, conjugando uma potencial riqueza agrícola com o acesso, sem intermediários, aos metais, estender-se-ia ao povoado de Arzil e a sua superioridade económica e estratégica conduziria à sua afirmação como centro político-económico, pelo menos à micro-escala local.
         Esta situação parece indubitável, durante a II Idade do Ferro, onde na sua área de influência directa podemos colocar, nesse momento, os povoados de Ilha Grande e Fonte Santa, algo mais distantes, localizados na área das ribeiras do Sado. É inquestionável que a existência do seu santuário, certamente de grandes dimensões, o que indica a sua importância, permite afirmar que o Cerro do Castelo de Garvão era o local onde se controlavam os mecanismos de coesão social e económica de grupos gentilícios ou supra-gentilícios (Correia, 1996b), durante a segunda metade do I milénio a.C. (1)

         Deve salientar-se que se em alguns casos os povoados se implantam em locais nunca até então ocupados, em outros verifica-se uma instalação directa sobre os níveis do Bronze final, como parece ocorrer no Cerro do Castelo de Garvão, por exemplo. A primeira situação, aparentemente mais frequente, estará demonstrada em vários sítios do Alentejo Central e do Baixo Alentejo, concretamente na área urbana de Beja, nas Mesas do Castelinho, no Castelo Velho do Degebe e nos sítios intervencionados por Manuel Calado e Leonor Rocha, nos concelhos do Alandroal e Borba, concretamente o Castelo Velho, a Rocha da Mina e o Castelão (Calado e Rocha, 1997). (2)

 

1 Ana Margarida Arruda. A Idade do Ferro pós-orientalizante no Baixo Alentejo. Revista Portuguesa de Arqueologia. volume 4, número 2, 2001, pag.238

2  Idem. P. 287

publicado por José Pereira Malveiro às 21:08

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