24
Ago 18

Mapa dos lugares nas cortes, segundo o livro de John Stevens (1706) (1).jpgpag 62.jpgPrimeira fi guração conhecida de reunião de Cortes, fi nais do século XV.jpg

Concelho de Garvão no banco Décimo Quarto

 

         As cortes no Portugal monárquico, compõem-se dos três estados do reino, eclesiástico, nobreza, e povo, aos quaes costuma el rei convocar para as determinações públicas, e de grandes interesses.
        Juntam-se as pessoas dos três estados em uma sala ricamente adornada: na cabeceira d’ella se levanta um estrado de seis degraus com a elevação de sete palmos, que é para o trono d'el rei: na parte inferior arrimados à parede se põem bancos, e pelo corpo da sala, para se sentarem os chamados, que são os títulos, prelados, senhores de terras, e procuradores das cidades e vilas.
            Principia este acto com a assistência d'el rei, o qual costuma vir com opa rossagante de brocado, e ceptro de ouro na mão. Vem diante dele o condestável do reino com o estoque levantado, e mais adiante o alferes mór com a bandeira real enrolada, precedendo os reis de armas, arautos, e passavantes vestidos em cotas, onde se vê bordado o escudo do reino.
A estes antecedem os porteiros com maças de prata; e, se o acto é de juramento de algum príncipe, precedem a tudo os atabales, e clarins. Chegando el rei à cadeira, se acomodam todos nos seus assentos determinados.1
          As Cortes, apesar de se tratar de um processo lento e susceptível de diversas interpretações, terão evoluido a partir dos primeiros conselhos privativos do rei: as Cúrias, compostas por elementos do Clero e da Nobreza e tipificado pela ligação pessoal de vassalidade, fidelidade e serviço ao rei destes conselheiros.
            Segundo Maria Helena da Cruz Coelho: Em simultâneo, quando surgiam grandes problemas políticos, os monarcas convocavam uma reunião mais alargada, uma Cúria extraordinária, com os tradicionais vassalos da nobreza e clero, que sempre o aconselhavam, mas que também “representavam” a comunidade social do reino, o que abriu espaço à presença dos representantes dos concelhos, portanto do “Terceiro Estado”, para que toda a sociedade fosse consultada. Na realidade só estes últimos actuavam verdadeiramente em representação dos municípios a que pertenciam, e com a sua presença nessa reunião temos não já apenas uma Cúria mas umas Cortes. Outro importante passo nesta progressão foi a possibilidade de se admitir a apresentação, por parte das diversas forças sociais presentes, de reclamações contra os abusos da actuação dos oficiais régios ou dos privilegiados.2
           Teremos de entender que na evolução e até mesmo na sua génese, dos primeiros consilios dos rei para as Cortes Geraes, terão contribuido dversos factores, não só a necessidade do rei em auscultar o sentimento dos seus súbditos, mas igualmente a forte pressão dos concelhos, legitimados pelas Cartas de Foral, em se fazerem ouvir e expor os seus problemas e necessidades, principalmente nas questões que lhes diziam directamente respeito e nas mais importantes decisões económicas e financeiras da política régia que os afectavam.
           Assim se abriu caminho para a institucionalização da representatividade em Cortes e desde os tempos medievais se rasgaram os horizontes da sua transformação futura em assembleia deliberativa pela votação da maioria.3 Na constituição destas cortes estão representados as vilas mais importantes do reino, o concelho de Garvão passou a estar representado com assento no banco décimo quarto, juntamente com Panoias e Ourique no banco décimo quinto.

 

 

1 - João Bautista de Castro. Mapa de Portugal Antigo e Moderno, Lisboa, 1700-1774.

2 - Maria Helena da Cruz Coelho, As cortes no reino de Portugal: antecedentes e concretizações. 2018. 

3 - Idem

publicado por José Pereira Malveiro às 21:55

21
Ago 18

CasadaCamara.jpg

Paços do Concelho de Garvão

 

Cortes de 1439: Reinado de D. Afonso V ( Regente: Infante D. Pedro

 

       Segundo João José Alves Dias e Pedro Pinto em, CORTES PORTUGUESAS. Reinado de D. Afonso V. Cortes de 1439, nas Cortes Gerais de 1439, realizadas em Lisboa, no reinado de D. Afonso V, nos Capitollos de garuam e panoyas,1 surge a notícia da Reformulação de três dos capítulos a que as vilas de Garvão e de Panóias obtiveram deferimento, de entre aqueles que as vilas se agravaram em Cortes, com os respetivos desembargos.2

          O que nos ficou até hoje destas Cortes Geraes, são os chamados “capítulos” ou “artigos”, apresentados geralmente pelo Povo ao rei, acompanhados das respostas deste, não havendo conhecimento da redação de quaisquer actas das reuniões de Cortes, se de facto alguma vez existiram ou se foram redigidas.

          Sobre a intervenção do procurador de Garvão nestas Cortes, surge num dos capítulos referentes a Garvão e Panoias, sendo procurador Afonso Giraldez, (igualmente procurador de Ourique e Castro Verde), uma petição que foi concedida, no sentido de os viajantes que passam por Garvão, deixarem de pagar as portagens exigidas pelos comendadores, como era costume antigo.

[Cap.º 1.º]
Item Senhor sabera a uosa merçee que os comendadores
de poucos tenpos aca e seus rrendeiros costrangem quaaesquer
pesoas que passam per as ujllas e termos sseus e fazem lhe pagar
portageens posto que nom vaão senom de hida sem conprando
nem uendendo o que nunca foy de custume saluo os que
conprauam E uendjam estes pagauam E os que pasauam nenhuũa
cousa E aInda o pyor que he elles pooem de sua maão Iuizes E
almoxarifes que esto aIam de Iulgar o que nunca ffoy que senpre
os Iuizes da terra aujam de taaes fectos como estes conhocimento
Por que uos pidjmos Senhor por merçee que lhes defendaaes
que nom husem de tal custume pois que nunca foy
em esto Senhor nos farees merçee

Mandamos que se guarde em esto o custume antigo E se
lhes ora taaes portagees demandam nouamente nom lhes seIa
conssentjdo.

          O procurador alegou igualmente que o rei D. João I tinha lançado mão, naquele lugar, aos lavradores que os possuíam, certo trigo, cevada e gado, para Ceuta, bens esses que nunca lhes tinham chegado a ser pagos.

         O financiamento da campanha militar relacionada com a conquista portuguesa da praça norte-africana de Ceuta, no verão de 1415 por D. João I, implicou uma série de medidas extraordinárias, nomeadamente, entre outras, a requisição de gado e cereais aos agricultores da província, incluindo, como se observou, aos do concelho de Garvão.

            Gado e cereais esses que vinte e quatro anos depois ainda não tinham sido pagos, o que levou o procurador do concelho a intervir para o seu efectivo pagamento.

          Esta requisição forçada de bens, organizado e gerido pela própria Coroa, com vista a financiar as frotas e o exército para grandes operações militares, pode ser visto como um verdadeiro saque das populações, pois quase sempre esses bens ficavam por pagar, arrastando-se durante anos e anos, sem uma solução minimamente satisfatória para as populações, pois a coroa, apesar de concordar nesse pagamento, como se obsera no final da petição, nunca relevava disponibilidade financeira para o fazer.

[Cap.º 2.º]
Senhor sabera a uossa merçee que El Rey dom Ioham
uoso auoo cuIa alma deus aIa lançou certos gaados3 em estes
llugares suso dictos .s. aos llauradores e aaquelles que os tijnham
E esso medes certo trigo e ceuada pera cepta os quaaes gaados
nem pam nunca nos foy pagado o qual el Rey dom Edhuarte cuIa
alma deus aIa o mandou senpre uer em estes lugares suso dictos
pera os mandar pagar de que nunca dello ouuemos nenhuũa cousa
Por que uos pidjmos Senhor por merçee que desencarreguees
a alma de uosso padre e nos mandees pagar
em esto nos farees merçee

Fazee certo do que o dicto Senhor meu auoo que deus aIa
deue E nos o mandaremos pagar.

        Surge-nos igualmente no capítulo três, o pedido para os mancebos deixarem de pagar conhoçenças4 aos comendadores e rendeiros, pois tal uso nunca o foi e da dificuldade em ajustar os mancebos, pois estes exigiam que se lhes pagassem as conhoçenças. Tal pedido foi igualmente concedido.

[Cap.º 3.º]
Item Senhor ssabera a uosa merçee que a nos he fecto huũ
grande agrauo que todos somos llauradores e criadores E do
que nos deus da damos noso djzimo dereitamente E esso medes5
nossos mancebos do trigo das searas que am E dos gaados que
teem E depois nos pedem os comendadores e sseus rrendeiros
que lhe paguemos conhoçenças o que antigamente nunca foy E
por este aazo6 sse pagam mal os djzjmos E sse faz na terra muyto
mal , entanto que os mancebos nom querem Ia talhar7 soldada
connosco senom que paguemos por elles as dictas conhoçenças
por que uos pidjmos Senhor por merçee que lhe defendaaes
que nom leuem nem demandem taaes conhoçenças que asaz
abasta do que nos deus da lhe pagarmos seu djzjmo
em esto nos farees merçee

Mandamos que se guarde em esto o custume antigo·

 

 

1 - João José Alves Dias, Pedro Pinto. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso V: Cortes de 1439. Centro de Estudos Históricos. Universidade Nova de Lisboa. Lisboa. 1.ª edição, 2016.

2 -  Lisboa, A.N.T.T., Chancelaria de D. Afonso V, Livro 2, fól. 11v.º (Traslado em A.N.T.T., Odiana, Livro 5, fól. 132v.º-133.)

3 - Riscado: “per”.

4 - Prestação que antigamente se pagava aos párocos, por certos rendimentos, em relação aos quais não havia regra para se pagarem dízimos. Podia tratar-se igualmente de uma certa quantia devida a um senhorio por qualquer bom ofício feito ou por reconhecimento de vassalagem.

5 - Mesmo

6 - Motivo

7 - Ajustar

 

 

publicado por José Pereira Malveiro às 21:49

14
Ago 18
CENTENÁRIO

“O famigerado heroi do Crime Grande da Estação do Rocio”

VALE de SANTIAGO
José Júlio da Costa, Herói ou Carrasco.

Parte 6 (de 12)

 

          A greve geral de 18 de Novembro de 1918, apesar de não ter a afluência expectada no país em geral, teve uma grande aceitação no Vale de Santiago, freguesia do concelho de Odemira, onde a população demonstrava alguma consciencialização politica e não era estranha à implantação do regime comunista na Rússia em Outubro de 1918.

          A greve geral não teve a adesão no resto do país como se observou no Vale de Santiago, de facto a fraca adesão dos trabalhadores de sectores vitais da economia nacional condenou os trabalhadores rurais do Vale de Santiago ao isolamento e consequentemente à derrota final, apesar de se entrincheiram-se no ponto mais alto da vila e tentarem uma brava resistência, enquanto não chegavam os tão esperados reforços, duma revolução triunfante, esta afinal não se concretizou.

          Enquanto um grupo de cerca de sessenta trabalhadores, “não só daquela freguesia mas também de outras vizinhas”, procurou fazer frente e resistiu durante quatro dias ao assalto das forças da GNR e às milícias civis dos proprietários rurais no Cerro Alto, outros foram perseguidos e presos na própria vila pelos militares que fecharam inclusivamente as instalações da Associação dos Trabalhadores Rurais 

          Nestes acontecimentos finais do Vale de Santiago interveio José Júlio da Costa, primeiro como guia das forças militares que se dirigiam ao vale de Santiago e posteriormente como conciliador a pedido das autoridades, pois de facto era o único civil que acompanhou os militares na fase inicial.

          Por um lado logrou convencer os revoltosos a renderem-se com a promessa das autoridades de que não seriam molestados, promessa essa que não veio a ser cumprida, por outro lado e segundo relatos da época, José Júlio da Costa seria um dos mais encarniçados na perseguição aos trabalhadores revoltosos, tanto como guia da força militar na direcção do Vale de Santiago, como na sua perseguição juntamente com milícias organizadas pelos proprietários, posteriormente à sua rendição.

          Este comportamento terá contribuído fortemente para a sua convicção em abater Sidónio Pais, José Júlio da Costa era um homem dividido, por um lado fazia parte daqueles republicanos que inicialmente apoiaram o Governo de Sidónio Pais, tal como os seus heróis Machado Santos e Carlos da Maia e que posteriormente viriam a ficar desiludidos com as suas políticas, igualmente laços familiares prendiam-no aos lavradores ricos da região, pois José Júlio da Costa era primo de António Eduardo Júlio, o proprietário do celeiro arrombado pelos trabalhadores rurais do Vale de Santiago.

 

In: José Pereira Malveiro, José Júlio da Costa - O Famigerado Herói do Crime Grande da Estação do Rocio, Garvão, 2018

603_montagem de capa copy (6).jpgClique para adquirir o livro: José Júlio da Costa - O Famigerado Herói do Crime Grande da Estação do Rocio

 

publicado por José Pereira Malveiro às 19:59

11
Ago 18

Da Vila de Garvão

          Tem-se desenvolvido a temática das Confrarias e Irmandades na vila de Garvão, sejam elas de invocação ao Espírito Santo, como denominadas de Santas Casas da Misericórdia.

          Tem-se agora a noção da existência de outras Irmandades em Garvão, nomeadamente a Irmandade do Rosário dos Brancos,[1] a Irmandade do Rosário dos Pretos[2] e a Confraria do Santíssimo Sacramento da vila de Garvão.[3]

          Este estudo, como o título o indica, leva-nos igualmente para a existência de comunidades de negros em Garvão, (e consequentemente sobre as relações esclavagistas e a sua evolução), cuja existência anda é visível na onomástica da actual população da vila, conforme se verá.

          Assim, ao se aprofundar o conhecimento sobre as duas primeiras Irmandades referidas, vai-nos surgindo, esporadicamente, a menção a outras Irmandades e da mesma maneira que a Irmandade do Espirito Santo está, de uma certa forma, relacionada com os cristãos-novos, (diga-mos judeus e mouros convertidos ao cristianismo), também a Irmandade do Rosário dos Pretos, como o nome o indica, estará relacionada com a presença de elevado número de população negra em Garvão.

          Por consequência, onde havia uma Irmandade do Rosário de Brancos haveria outra de Negros, fruto das divergências internas entre estas duas camadas da população. Existe notícias igualmente que em certas terras a Irmandade do Rosário dos Brancos se juntou à Confraria do Santíssimo Sacramento, Irmandade esta cujos estatutos continham geralmente a cláusula de limpeza de sangue e vedado a “todas as raças proibidas pela nossa santa Fé”. A Irmandade do Rosário de Negros, quando o elevado número de “pardos”, fruto da mestiçagem e integração entre a população branca e negra, era notória, deixou de se justificar e levou ao fim desta.

          A presença de negros em Portugal está atestada desde o século XV e a sua presença no Alentejo, nomeadamente no Vale do Sado tem sido objecto de vários estudos relacionados com a sua resistência a certas doenças, como o paludismo que afectavam a população branca. Julga-se que seria um colonato de escravos, ai estabelecido por serem supostamente imunes ao paludismo, localmente conhecido por febre terçã ou sezões, um mal endémico que durante séculos deixou o território desabitado, eram terrenos insalubres, rodeados de charnecas e pântanos. Traços negroides esses ainda identificáveis nalguns moradores das povoações das margens do rio Sado: cabelo encarapinhado, pele morena, lábios grossos e nariz largo, nomeadamente em Alcácer do Sal, São Romão de Sádão, Rio de Moinhos e São João dos Negrilhos entre outros.

          Apesar de inicialmente, se tratar de uma população estranha, minoritária, marginalizada e alvo de preconceitos pela população branca, pelo seu estatuto não só de escravos, mas igualmente pelas profissões que desempenavam, nomeadamente relacionadas com a agricultura e pastoreio de gados, não deixou contudo de ter um certo impacto, em termos socioeconômicos e demográficos, nas terras onde se fixaram, cuja presença ainda hoje é atestada por nomes de família ou alcunhas, como fulana Preta, fulano Escuro, Moreno, Carapinha, Castanho e Pardo entre outros, assim como na nomeação de certos lugares como Monte da Pretas, Monte Negro, Negrilhos etc.

          É neste quadro de dispersão da população negra e escrava pelas várias vilas do interior alentejano que se fundaram e desenvolveram as várias confrarias negras ainda na primeira metade do século XVI, revelando a existência de comunidades escravas importantes. Embora de cariz religioso cristão, não deixava de se notar certas influências da religião tradicional africana nas suas cerimónias.

          As cerimónias das Confrarias Negras do Rosário eram festejadas de um modo que desagradava aos católicos mais puritanos. Oriundos de uma cultura, cujas crenças exprimiam-se com diferentes modos simbólicos do vasto continente africano, eram sempre vistas, pela nomenclatura católica, como pagãs e obras do demônio, perante as recriminações escandalizadas dos poderes eclesiásticos locais.

          Procurava-se, por conseguinte, frequentemente forçá-los a mais moderação nas suas expressões festivas onde os traços culturais africanos exprimiam-se com maior vivacidade e naturalidade. A história das confrarias religiosas negras é a do conflito entre esta cultura e a representada pela religião católica, maioritária, considerada como a única detentora da verdade e a única aceitável.

          A par desta situação, o poder real sempre se mostrou tolerante e benevolente perante as demonstrações profanas das irmandades negras, chegando a atribuir-lhes uma série de privilégios que lhes permitia, inclusivamente, pagar o resgate dos escravos mesmo contra a vontade dos donos, nomeadamente na confraria da Virgem do Rosário em Lisboa que admitia no seu seio, todas as categorias sociais, independentemente do estatuto econômico e social. Privilégio esse que entrou imediatamente em conflito com os possuidores dos escravos.

          Assim, ainda no século XVI, quando os membros da Confraria eram mistos, os irmãos negros conseguiram eleger vários elementos, dentre eles, para os lugares-chave da Mesa da instituição devido ao maior número de irmãos negros, o desentendimento e o conflito chegaram a tal ponto que a instituição dividiu-se em duas confrarias, a Confraria do Rosário Branca e a Confraria do Rosário Negra.

          A Confraria do Rosário tinha a componente pedagógica da obrigatoriedade da reza diária, parcial ou total, de um Rosário, o que correspondia a cento e cinquenta Ave-Marias e quinze Pais-nossos, o que numa população analfabeta onde dominava a expressão oral, o repetivismo proporcionava-lhes uma melhor memorização e inculcação dos mistérios e dogmas da fé católica

          Como se observou a Confraria do Rosário dos Brancos, em certos casos, ter-se-há associado à confraria do Santíssimo Sacramento, cujos estatutos primavam pela limpeza de sangue, o que, teoricamente, os membros das antigas irmandades do Rosário não podiam fazer parte. Estatuto esse já existente no caracter exclusivista da Confraria dos Brancos em oposição à Confraria dos Negros, embora, em certas terras, haja notícia da existências destas duas confrarias simultaneamente ou melhor, no século XVIII, raras são as paróquias onde estas duas devoções não são implantadas.

              A Confraria do Rosário dos Negros, pela mestiçagem, pela assimilação, pelo fim da escravatura em Portugal, em 1761 e pela proibição da cláusula de limpeza de sangue pelo Marquês de Pombal, em 1773, ditou o fim destas Confrarias dos negros cuja razão de ser deixou de existir.

 

[1] IANTT, OS/CA, Liv. 36, Dez. 1766, Irmandade do Rosário dos Brancos. Garvão. Igreja matriz.

[2] Ano de referência 1766. Também na vila de Garvão houve uma confraria do Rosário dos Brancos, que D. José autorizou, em 1766, a aforar uma herdade. Se havia uma de Brancos era porque existia outra de Pretos. Torre do Tombo, Mesa da Consciência e Ordens, Ordem de Santiago, Chancelaria antiga, Liv. 36, f. 372 v. – 23.12.1766. in: Jorge Fonseca. RELIGIÃO E LIBERDADE, OS NEGROS NAS IRMANDADES E CONFRARIAS PORTUGUESAS (SÉCULOS XV A XIX). CHAM, FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Universidade dos Açores. V.N.Famalicão. 2016.

[3] 1819 – 1846, Grupo de Arquivos Privados dos Fundos pertencentes ao Arquivo da Câmara Municipal de Beja.

publicado por José Pereira Malveiro às 18:43

05
Ago 18

            As instalações do Hospital da Irmandade do Sagrado Espírito Santo de Garvão ainda, nos princípios dos anos setenta do século passado, se observavam na Rua da Misericórdia, até que a vaga reformista de obras camarárias, dos finais dos anos setenta e princípios de oitenta, deitou por terra o que restava destas instalações. 

            A Irmandade do Sagrado Espírito Santo, animada pelo espírito de solidariedade e religiosidade da época, que caracterizavam e estavam na génese da constituição destas Confrarias, criou na vila de Garvão o Hospital do Sagrado Espírito Santo, para tratamento e aconchego dos doentes e peregrinos. Hospital esse que passou posteriormente, em 1734, para a posse da Santa Casa da Misericórdia de Garvão, como se pode observar na folha 11 verso e 12 do livro “da Misericórdia e do Sagrado Espírito Santo”.

 

“Auto de Pose

(…) e ali eu Escrivão com o Provedor da Santa

Caza da Mizericórdia (…) e o Escrivão da mesma (…)

fomos a Igreja do Espirito Santo (…) e meti de pose da ade-

menistrasão da dita Igreja, e de tudo o mais

a ela pertençente, como tambem das ca-

zas que servem de Hospital (…)”

 

            A constituição deste Hospital, tomando como exemplo outros Hospitais do reino, teria seguido os mesmos padrões de edificação comum às outras Irmandades do género. O espírito de pertença a um grupo específico que actuava em caso de necessidade de um dos seus membros, deveria ter sido a força impulsionadora para que um grupo de “homes boons do Concelho que estavam presentes, cedessem logo algum do seu” [1] para a constituição destas casas de solidariedade.

           Embora o Hospital recebesse, da população, pequenas ofertas de produtos agrícolas, viveres, farinhas, pão e legumes, dentro das suas parcas possibilidades, era nos rendimentos provenientes das rendas das propriedades, olivais, vinhas, pastagens e terras de semeadura que consistia a principal fonte de receita das Irmandades e Hospitais do Sagrado Espírito Santo.

            Eram bens fundiários deixados em legado pela população, alguns ainda em vida, outros à beira da morte, leigos ou crentes, cujos rendimentos revertiam a favor de missas pela sua alma e salvação eterna. A salvação da alma, dos doadores, encontrava nesta humilde servilidade, na devoção religiosa e na doação a estas obras pias, um caminho para a sua própria salvação eterna e o acesso ao paraíso, era em seu benefício próprio, que se doavam bens para a fundação de hospitais e outras obras de cariz religioso e caritativo, criava-se, assim, uma necessidade, entre os vivos, na continuação destas obras pias para além da morte.

           A Irmandade encontrava nas receitas da venda da salvação eterna os meios necessários para o bem terreno dos pacientes. A própria arquitectura destas instituições confundem-se com a casa de Deus, um espaço, onde mais do que salvar os corpos, havia que procurar a salvação das almas.

           Seriam, inicialmente, instalações humildes, por vezes nas casas dos próprios irmãos, compondo-se de poucas camas ou de reduzidos cómodos de recolhimento dos necessitados. Posteriormente teriam dormitório com os seus repartimentos e camas para os enfermos e instalações para os enfermeiros, teriam igualmente celeiro para o recolhimento dos frutos, que recebe das rendas e cavalariça para as cavalgaduras dos peregrinos ou viajantes. Por vezes, em certas terras, inicialmente, ou eram denominados por Albergarias ou estas evoluíram para Hospitais ou mantiveram a denominação Hospital-Albergaria do Espírito Santo como se observou na cidade do Porto, a que, por vezes os nobres, nas suas andanças, disputavam com os peregrinos e vagabundos a utilização dessas instalações[2].

           Os oficiais envolvidos na administração do hospital, para além do Mordomo do hospital e o escrivão, incluía igualmente os Sangradores e os barbeiros, o físico e cirurgião, o boticário, o enfermeiro e um capelão.

           Eram remunerados segundo as suas atribuições que geralmente consistia num moio de trigo[3] para os cargos mais importantes e valores em dinheiro, (dez ou quinze mil reis em certos Hospitais), ou em géneros para os outros cargos que poderiam incluir, porcos, borregos e cabritos, galinhas e perus, favas, trigo e outros cereais e legumes, dependendo das receitas que entravam no Hospital. O boticário recebia igualmente pagamento pelas mezinhas que fazia.

           Os irmãos relacionados com a gestão do Hospital do Espírito Santo estavam isentos de certas obrigações ou usufruíam de certas regalias, muitas vezes com os mesmos privilégios, liberdades e poderes dos Almoxarifes Reais[4]. Tinham igualmente autorização para os seus Mamposteiros, (Pedidores autorizados, ao serviço das Confrarias). irem para outras terras pedir bens em géneros ou dinheiros.

            Como se observou, estas instituições hospitalares, de princípios tão rudimentares e de simples apoio à população, evolui, ao longo dos tempos, com o apoio régio, para estabelecimentos mais precisos até que chegados ao século XVIII, se assistia, com o fim das misericórdias, ao fim destes hospitais nas províncias.

            Em Garvão, como se afirmou, ainda nos anos sessenta e setenta do século passado, as casas do hospital da Irmandade do Sagrado Espírito Santo encontravam-se de pé, edifício térreo, de paredes de taipa e pedra, postas de cutelo à maneira Árabe, de um só piso, de telha vã e chão de ladrilhos de barro cosido toscamente, embora uma parte em ruínas ainda era possível vislumbrar restos das cadeiras, mesas, arcas e outro mobiliário que se encontravam nas casas do dito hospital, inclusivamente, também, restos de tecidos, rasgados, rotos, sujos, mas, onde ainda se notava resquícios dos bordados dourados que em tempos devem ter adornado as vestes dos capelães e outros oficiais do culto nas suas obrigações e cuidados litúrgicos.

            O Hospital, apesar do inegável valor histórico, por muito arruinado que estivesse, o local foi posteriormente, aos anos setenta do século XX, completamente terraplanado e limpo, ficando o espaço em aberto delimitado pelos modernos lancis de cimento. Situado no primitivo aglomerado urbano da vila de Garvão, na actual rua da Misericórdia, junto à Igreja Matriz, a tradição popular, pelo menos os mais velhos, ainda se referem ao local como “onde estava o Hospital”.

 

[1] Maria Marta lobo de Araújo, Om. Cit.

[2] Torre do Tombo, Chanchelaria de D. João I, liv. 3, fl. 36 v. Extremadura, liv. 12, fl.31.

[3] Medida de capacidade do antigo sistema equivalente a 60 alqueires ou 828 litros

[4] Torre do Tombo, Odiana, liv.4, fls 187-187 v. Os Almoxarifes Reais surgem no reinado de D.Sancho II e referem-se ao funcionário régio que superintendia os assuntos da coroa numa certa província e as repartições fiscais regionais, encarregados de centralizar a arrecadação dos tributos e rendas da Coroa.

publicado por José Pereira Malveiro às 20:41

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