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Fev 16

O CRÂNIO TRESPASSADO do Depósito Votivo de Garvão

          Uma das particularidades do Deposito Votivo de Garvão foi a descoberta de um crânio trespassado numa clara cerimónia de fundação do próprio Depósito Votivo.
          O crânio localizado na base do depósito pertenceu a uma mulher cuja idade oscilaria entre os 35 e os 40 anos (Fernandes 1986, 78).
          A morte foi-lhe provocada por três golpes desferidos na zona occipital e parietal por um instrumento contundente, pesado, dotado de um gume curvo pouco penetrante, que incidiu obliquamente sobre a cabeça da vítima.
          Foi assim reconstituído que a vítima se encontraria deitada em decúbito ventral, quando lhe foram desferidos sucessivamente três golpes. Qualquer um deles seria o suficiente para lhe provocar a morte, e certamente que com o primeiro deles ela entrou em lipotimia (perda de sentidos).
          A morfologia das lesões sugere que o instrumento utilizado terá sido um machado de pedra polida de que, aliás, se recolheu um exemplar no depósito (Antunes e Cunha 1986, 84-85).
          O crânio foi então separado do corpo; a forma como isso se deu e o espaço de tempo que mediou entre este facto e a deposição do crânio como elemento ritual na criação do depósito votivo são, no entanto, indetermináveis.
          O crânio, estava, aparentemente, associado a alguns ossos de animais o que sugere um fenómeno de libação sacralizadora associada a um sacrifício humano.
           Na sequência deste tema da trepanação, muitos outros achados provêm de depósitos de épocas subsequentes ao período mesolítico, mostrando assim a continuidade e a larga diacronia desta prática.
           Um crânio muito mais tardio encontrado em Tróia (Setúbal) «deixa a ideia de que a trepanação era um tratamento a que os habitantes da Península Ibérica tinham acesso no período romano».
           Mas entre estes tempos históricos, diversas jazidas portuguesas neolíticas e calcolíticas ou da Idade do Bronze revelaram crânios humanos com tais marcas.
Cerimónias fundacionais com recurso a despojos humanos como parece ser o caso de Garvão do século III a. C., será já epifenómenos consequentes de uma resistência de cultos e crenças profundamente enraizados que atravessam a I idade do ferro.
           Reminiscências de conceitos e esquemas de estruturação do território em que se conjugariam, num hábil sincretismo, os espaços tumulares monumentais que se construíram com os mais antigos, dando e renovando sentido à memoria de significados e significantes impregnados na paisagem.
           Todo o espólio parece implicar a existência de um eventual ritual relacionado com um sacrifício humano, próprio do culto das cabeças cortadas em contexto guerreiro, bem como do culto das cabeças inserido em rituais fundacionais e de soberania. A natureza dos objectos votivos encontrados, como a cerâmica ou as placas oculadas – na linha dos achados do Escoural, Estremoz, Vidigueira ou Évora, de épocas anteriores – e os múltiplos restos animais – a sugerir refeições e libações rituais cíclicas, como seriam as cerimónias solsticiais –, indica-nos, assim, não só a persistência de crenças, como também a presença da segunda fase deste culto céltico.
           Efectivamente, muitos achados parecem indiciar ter havido um tratamento especial dado a certos crânios, tratamento esse que pode remeter-nos para práticas rituais de cariz mítico-religioso próprio do mundo celta.
           Segundo alguns autores, para estas populações, a cabeça possuiria atributos divinos. Como tal, talvez considerada incorruptível e autónoma do corpo, teria poderes protectores – das pessoas ou colectividades, do gado ou da vegetação –, divinatórios ou proféticos, de cura e de regeneração, a cabeça seria, assim, o centro dos poderes sobrenaturais, para além de ser o local onde se acreditaria estar alojada a histeria, a loucura ou os defeitos físicos mais impressionantes – mal sagrado ou mal de santo, na máxima popular de que o que é raro é maravilhoso.

In: Gabriela Morais, Contributos Portugueses Para O Estudo Do Culto Das Cabeças

publicado por José Pereira às 11:57

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